A presença dos judeus no Oriente Médio data dos "tempos bíblicos", aproximadamente 2000 anos antes da era comum. Segundo o estudioso francês Jules Isaac, parte representativa do povo judeu já se havia transferido do núcleo formador em Canaã para outr

O fenômeno das diásporas - atrelado à imagem da "Terra Prometida" - esteve sempre presente na trajetória do povo judeu que, em diferentes momentos da História, mobilizou-se em busca de novos espaços que pudessem substituir a terra perdida. O fato de os judeus possuírem uma origem antiga e professarem uma religião original e humanista que deu origem ao cristianismo e ao isla-mismo, não os livrou de perseguições contínuas, fatores indissolúveis de suas constantes fugas.

A facilidade de se transferir para outras terras e o oficial respeito romano pela pluralidade étnica levaram grande número de judeus a buscar opções de sobrevivência nas regiões ocidentais e orientais do Império. Nestas regiões, os judeus influenciaram e absorveram traços culturais de outros povos. A assimilação de novos padrões de cultura não os impediu de continuar mantendo a religião e as tradições judaicas, fortemente estruturadas e internamente cristalizadas, antes das grandes dispersões provocadas pela destruição do Segundo Templo.

Instalando-se em regiões do Império Romano do Oriente ou Bizantino, os judeus, conhecidos como romaniotas, organizaram comunidades que foram, no decorrer do tempo, submetidas ao domínio político de outros conquistadores, entre os quais os árabes e os otomanos.

Vivendo no Oriente Médio em terras dominadas pelos árabes nas "Guerras Santas" iniciadas no século VII, a maioria dos judeus, embora pressionada, não se deixou converter ao islamismo. Tempos depois, os judeus conseguiram acomodar-se na organização político-econômico e social islâmica, sem perder a identidade religiosa e as antigas tradições características do povo. A longa convivência com a civilização árabe levou os judeus a reforçar o patriarcalismo, o gosto pela música, a dança e sua alimentação. O uso da língua árabe se tornou comum entre os moçárabes, hoje conhecidos como judeus-orientais.

O respeito aos "Povos do Livro" levou os muçulmanos, como prescreve o Corão, a legalizar a presença das minorias - cristãs e judaicas - em seus vastos domínios. No período do Califado (632-1057), um código de leis - Estatuto Dhimmis - foi instituído, obrigando judeus e cristãos a pagar certas taxas e impostos que lhes permitissem viver em terras muçulmanas, sem terem aceito Alá. O Corão, livro sagrado do islamismo, manifesta-se, de forma clara e inequívoca, sobre a existência das religiões judaica e cristã. Os muçulmanos reconhecem as duas religiões como formas "primitivas, incompletas e imperfeitas do Islã, embora depositárias de uma genuína, ainda que distorcida revelação divina" (2). Pelos Estatutos Dhimmis, tendo pago as devidas taxas, judeus e cristãos poderiam lá residir e manter o exercício livre de suas habilidades profissionais. Não aceitando Alá e o Corão, as duas minorias diferenciavam-se dos cidadãos árabes por opção própria e, como tal, passavam a ser "cidadãos de segunda classe".

Na Baixa Idade Média (século XI ao XV), quando a religião ocupava fundamental importância para a existência humana, os otomanos, procedentes das regiões armênias, iniciaram destemidas conquistas. Em 1453, depois da tomar Constantinopla, capital do Império Romano do Oriente, os otomanos estenderam seus domínios para regiões que iam da Península Balcânica ao Rio Danúbio, na Europa, e à Anatólia, na Ásia Menor. Conquistado o Islã e suas grandes concentrações urbanas, os turcos-otomanos conseguiram instalar-se num único bloco, uma vasta área que contrastava, no século XVII, com as dispersas possessões dos Habsburgos no continente europeu. Atingindo no período o máximo de sua extensão, o poderio do sultão espalhava-se por trinta reinos, abrangendo terras do Mar Mediterrâneo, do Negro, do Egeu, do Vermelho e do Golfo Pérsico.


Notas:
(2) Citações de Bernard Lewis: Os judeus do Islã. Rio de Janeiro: Ed. Xenon, 1990, p. 22 e 37.

Com a investida otomana na antiga Palestina e Arábia, onde se localizavam as cidades santas do judaísmo e do Islã, o Impé-rio Otomano tornou-se o último herdeiro do Impé- rio Bizantino e soberano dos lugares sagrados. Convertendo-se desde cedo ao islamismo e conscientes do fracasso das tentativas de imposição reli-giosa, os otomanos, en-dossando os Estatutos Dhimmis, posicionaram-se nas terras árabes conquistadas no respeito pelo pluralismo.

A expulsão dos judeus da Espanha "das três religiões" produziu a conhecida Diáspora Sefaradi que impulsionou milhares de judeus e cristãos-novos a buscar refúgio em terras onde pudessem viver em paz e praticar livremente a religião. Comunidades foram organizadas em algumas cidades da Europa ocidental e do Império Oto-mano pelos sefaradim - portugueses e espanhóis - perseguidos pela Inquisição e pelas leis racistas instituídas pelos Estatutos de Pureza de Sangue, vigentes em todos os domínios ibéricos desde o século XV.

Bayasid II, sultão do Império Otomano (1481-1512), conhecendo a relevância dos sefaradim e as circunstâncias da expulsão dos reinos ibéricos, recebeu-os nos seus vastos domínios, questionando o bom-senso do rei espanhol Fernando II ao decretar a expulsão em 31 de março de 1492. A receptividade de Bayasid aos refugiados criou laços de identidade que se solidificaram ao longo dos séculos, numa convivência de mútuo e duradouro respeito. Gracia Mendes, viúva de Francisco Mendes, magnata judeu-português, colocou-se a partir de 1537 à frente dos negócios do marido na Europa, chegando a conselheira dos sultões Suleiman e Selim II, tendo exercido enorme influência na área das relações exteriores do Império Otomano. Joseph Nassi, seu sobrinho e genro, tornando-se amigo e conselheiro de Suleiman, acabou nobilitado por ele como Duque de Naxos, das sete ilhas de Cyclades e de Tiberíades, na antiga Palestina (3).

Além de se acomodar na Itália sob a proteção do Papa, os sefaradim instalaram-se nas terras da África do Norte e dos Balcâs. No Mediterrâneo, novas comunidades judaicas formaram-se sob parâmetros semelhantes às existentes no período áureo da Península Ibérica. O contínuo apoio e proteção otomana incentivaram os sefaradim a retornar às terras do Oriente Médio de onde eram originários. Sábios e cabalistas espanhóis, entre os quais Isaac Ben Salomão Luria (1534-1572), transformaram a antiga cidade de Safed num centro dos estudos místicos judaicos.

Dispersos pelos vastos domínios do Império, os judeus viram-se submetidos a uma única autoridade e, no longo período em que assim permaneceram, os dirigentes otomanos valeram-se dos préstimos e conhecimentos dos sefaradim, não só para a expansão e desenvolvimento do comércio regional e internacional como no incremento das finanças, na diplomacia, nos negócios bancários, na corretagem e na ourivesaria. Nos 400 anos do Império, os judeus ocuparam importantes cargos político-administrativos otomanos, colaborando inclusive com a estratégia de colonização dos vastos domínios. Um exemplo dessa colaboração ocorreu no ano de 1577, quando grande número de famílias sefaradim da cidade de Safed, economicamente ativas e politicamente con- fiáveis, foram transferidas para as recém-conquistadas terras da ilha de Chipre, no Mediterrâneo.

Dos grupos étnicos minoritários do Império, os judeus apresentavam-se com vantagens: além de vestir-se da mesma forma que outros cidadãos, não ofereciam ameaça política e nenhum desafio à fé oficial, pois não disputavam com os muçulmanos a adesão dos pagãos. Os cristãos, sim. Portadores de uma religião proselitista e competidora, constituíam-se em potencial ameaça, visto serem senhores de um vasto império adversário. Reduzidos em número por se transferirem para outras terras, parte dos cristãos se posicionou, como os judeus, no meio urbano do Império Otomano.

Diante das diferenças étnicas e religiosas, conscientes das possíveis animosidades que pudessem surgir entre os habitantes de todo o Império, os otomanos fizeram prevalecer um sistema administrativo conveniente. Cada grupo religioso poderia se organizar em comunidades próprias e autônomas - Millet - dirigidas por um chefe religioso, responsável pela administração e cumprimento das leis. Cada chefe das Millet governava seu povo de acordo com suas leis religiosas e organização comunitária própria. Este sistema proporcionou às minorias, em particular a judaica, o reforço das suas identidades culturais e religiosas. Não existindo hierarquia na estrutura religiosa judaica, cada comunidade era autônoma na sua localidade, sujeita à autoridade de seu próprio Haham ou rabino. Freqüentes eram as cisões dessas comunidades ou kehilot e por quaisquer motivos.

Um decreto imperial de 1836 criou o cargo do Chacham-Bashi, rabino-mór, equiparando-o aos chefes eclesiásticos das Igrejas gregas e armênias. O cargo, criado em Istambul, levou que o Chacham-Bashi desta cidade tivesse autoridade sobre os outros centros judaicos do Império, inclusive sobre as cidades da antiga Palestina. Ele era responsável, ante a classe dominante otomana, pelo cumprimento dos deveres dos participantes comunitários; em especial, pela segurança coletiva e pagamento dos impostos. As condições permitiram que as Millet mantivessem suas escolas, hospitais, tribunais e métodos de captação de recursos.

A autonomia das Millet revelou-se bastante conveniente não só ao poder otomano mas às comunidades religiosas, pois puderam preservar suas tradições, costumes e as línguas maternas, desde que cumprissem as obrigações legais e recolhessem os impostos devidos ao Estado. Estes impostos constituiam as rendas destinadas ao sultão e à classe dirigente que, por direito, se aproveitavam destas e de todas as outras fontes de riqueza otomana. A preservação da harmonia e tranqüilidade social eram os principais objetivos de tal organização administrativa. O sultão, elo que unia as Millet, era a chave do sucesso do sistema, ponte de lealdade entre governantes e governados, fator básico da estabilidade otomana em diferentes espaços. Através dele, mantiveram-se separados diferentes grupos culturais, reduzindo ao mínimo possíveis focos de conflito. Foi a partir dessa organização administrativa que o Estado Otomano estruturou-se como sociedade multicultural. A manutenção do respeito e tolerância advinham da manutenção do poder da corte do sultão em Istambul, designada oficiosamente como "La Sublime Porte".


Notas:
(3) Veja Morashá, números de abril e setembro de 1998.