Judy Feld Carr, a canadense catedrática em musicologia que montou uma rede clandestina para resgatar judeus na Síria, esteve em setembro, em São Paulo, a convite do Fundo Comunitário e do Instituto Morashá de Cultura.

Até o final da década de 1990, pouco se ouvira falar nessa valente mulher mesmo nas esferas judaicas, pois, em seu trabalho, o anonimato era de vital importância para sua segurança e para a vida dos judeus que pretendia resgatar. E mesmo entre os que conseguiu fazer sair clandestinamente da Síria, poucos sabiam seu nome; a maioria a conhecia como "a mulher do Canadá" ou, simplesmente, "Mrs. Judy".

A história de sua vida e, principalmente, de seu empenho em ajudar judeus sírios se tornaram famosos com a publicação, em 1999, do livro The Ransomed of G'd: The Remarkable Story of One Woman's Role in the Rescue of Syrian Jews, de autoria do historiador Harold Troper. Como na ocasião Judy ainda estava envolvida no resgate, muitos detalhes tiveram que ser mantidos em sigilo. Foi apenas em 2001, depois de ter retirado da Síria a última família judia, que chegou a Nova York menos de uma hora antes que os aviões fossem arremessados contra as torres do World Trade Center, naquele trágico 11 de setembro, que os detalhes de sua história puderam ser revelados.

O livro de Harold Troper conta uma epopéia que envolveu grandes somas de dinheiro, ameaças, perigos e riscos inimagináveis, mas, acima de tudo, a corajosa determinação de uma mulher que dedicou praticamente três décadas de vida a auxiliar uma comunidade judaica tão distante da sua. Pessoal e diretamente, esteve envolvida no resgate de 3.228 judeus, que vivem atualmente nos Estados Unidos, no México e em Israel, entre vários outros países.

Em reconhecimento por seu trabalho, Judy Feld-Carr recebeu inúmeras láureas, entre as quais, a Ordem do Canadá, o Prêmio Simon Wiesenthal para a Tolerância, a Honra ao Mérito pela Defesa da Justiça e Direitos Humanos da Universidade de Haifa, além do título de Doutor Honoris Causa da Universidade Lauraentian. Uma placa colocada pela comunidade judaica Síria, no Brooklyn (Nova York), relembra a sua coragem: "Judy Feld-Carr, aquela que acordou enquanto ainda era noite e despertou o mundo para o nosso destino, na Síria. Graças a seus esforços, vidas foram salvas, famílias foram preservadas e amigos se reencontraram. Ela salvou mundos inteiros e será abençoada pelas gerações futuras".

O pano de fundo

Quando a Partilha da Palestina foi aprovada pelas Nações Unidas, em novembro de 1947, em toda a Síria e em todo o mundo árabe, ocorreram violentos distúrbios contra os judeus. Apesar da proibição de deixar a Síria, a intensificação da perseguição provocou um verdadeiro êxodo dos judeus sírios que atingiu seu pico em 1948, após a independência de Israel.

Os que ficaram para trás passaram a sofrer todo tipo de discriminação. Os judeus não podiam ter posse de nada e suas contas bancárias foram congeladas. Suas carteiras de identidades portavam, e ainda portam, hoje, o carimbo Mussaw, judeu; toda a correspondência era aberta e as poucas linhas telefônicas que lhes eram concedidas estavam sob "grampo".As instituições religiosas e de assistência social, assim como as escolas judaicas, ficaram sob o controle das autoridades muçulmanas. Só tinham permissão de viver nos bairros judaicos em Damasco, Alepo e Qamishli e, se tivessem que ir a algum lugar, a mais de 3 km de distância de sua residência, precisavam de permissão do governo.

A temida polícia secreta síria, conhecida como Muhabarat, treinada pelo nazista Aloïs Brünner, criou um departamento especial para cuidar dos chamados "assuntos judaicos" e seus agentes passaram a vigiar os judeus. Impedidos de sair do país, alguns perderam a vida tentando escapar; se capturados, eram trancados em prisões e torturados. Quando comerciantes judeus recebiam autorização para viajar ao exterior, tinham que pagar impostos exorbitantes e seus familiares eram mantidos como reféns, no país - como garantia até seu retorno.

Em 1971, quando Assad subiu ao poder, havia por volta de 5 mil judeus presos na Síria. Ao longo de sua história pós-criação de Israel, a comunidade vivenciou poucos períodos menos hostis. Pressões externas levaram o governo a permitir aos judeus viajar para o exterior, o que equivalia a uma clara oportunidade de "escapar". O ano de 1992 foi um marco, quando mais de dois mil judeus conseguiram seu intento, mas novamente, as portas se fecharam para a comunidade judaica da Síria.

O início da luta

Foi nesse contexto que a vida de Judy Feld-Carr começou a se entrelaçar com a de judeus na Síria. Quando Morashá a questionou sobre a razão que a levou a esse caminho, ela diz não ter apenas uma resposta, mas um conjunto.

Nascida em Montreal, passou a maior parte de sua infância em Sudbury, na Província de Ontário. "Na verdade, tive uma vida muito tranqüila", conta. "Cresci em uma cidade onde havia apenas 30 famílias judias. O fato de pertencer a um grupo minoritário, em uma cidade pequena, fez com que eu percebesse, desde cedo, o significado de ser diferente. Costumo dizer que D'us age por caminhos estranhos".

Judy cresceu ouvindo os pais e a avó contarem sobre as atrocidades engendradas pelos nazistas na Europa.Fundamental para a compreensão dos aspectos humanos da Shoá foi a convivência com uma vizinha, Sophie, cuja filha fora assassinada ainda criança em Auschwitz.

"Minha vida foi profundamente influenciada por ela", relembra Judy, "Sophie me abraçava e chorava, lembrando da filha que perdera. Durante um de nossos encontros ela me fez prometer que, como judia, eu faria tudo o que fosse possível para garantir que jamais algo semelhante ao Holocausto voltasse a se repetir". Judy lembra que muitas vezes teve pesadelos tentando imaginar o que faria se o destino a colocasse à prova. Anos mais tarde foi, realmente, "testada". Levava uma vida organizada, calma, tanto em sua profissão de professora catedrática em musicologia, como pessoalmente - casada com Ronald Carr, tinham de 3 filhos e uma família feliz.

Jamais pensou em se tornar "agente secreta", não fora treinada para isso e nem recrutada por qualquer agência governamental para essa missão. Uma série de circunstâncias foram-se apresentando e ela acabou por se envolver. Seu primeiro marido, Ronald Feld, era um ativista engajado. À pergunta de Morashá sobre a razão para o casal escolher justamente os judeus da Síria e não de outro país árabe, respondeu: "Não os escolhemos por nenhum motivo específico. Não era muito fácil conciliar meu papel de mãe, profissional e ativista política envolvida em uma rede internacional de intrigas. Mas a causa me pareceu justa e o trabalho tinha que ser feito!"

Tudo começou em 1972, quando o casal tomou conhecimento do caso de 12 jovens judeus que haviam morrido ao tentar escapar da Síria. Uma reportagem sobre o caso revelara que os guardas sírios de fronteira haviam assistido, sem nada fazer, enquanto os judeus voavam pelos ares, um a um, por não saber que corriam, na fuga, em terreno minado.

Indignados, o casal e alguns amigos decidiram que urgia fazer-se algo mais sério. Na época, não havia nenhum grupo canadense lutando em prol dos judeus sírios, uma comunidade isolada do mundo. Após várias tentativas e com a ajuda de um tradutor, Ronald consegue falar com uma telefonista síria e pede para se comunicar com uma escola judaica. Apesar de acabar falando com um informante da Muhabarat, os Felds obtêm o nome de um judeu em Damasco, o rabino Ibrahim Hamra. "Era a primeira, em muito tempo, e foi a única ligação telefônica feita à Síria, proveniente de uma comunidade judaica", recorda Judy, emocionada.

No mesmo dia, os Felds enviaram um telegrama ao rabino, iniciando o contato. Era o ponto de partida de um fluxo constante de caixas com livros religiosos, entre Toronto e Damasco, além de cartas e telegramas, todos codificados. Era Judy que decodificava as mensagens. Para transmitir informações muitas vezes eram usadas citações bíblicas. Por exemplo, logo após a realização de um sangrento pogrom, Judy recebeu um telegrama com a seguinte alusão bíblica: "Rachel está chorando por seus filhos", indicando que havia crianças feridas.

Em 1973, aos 43 anos, Ronald faleceu subitamente, vítima de um ataque cardíaco. Dias antes, recebera ameaças por suas atividades clandestinas. Nem a morte inesperada de seu marido, nem as ameaças afastaram Judy de seu caminho e ela decide continuar com a missão. A sinagoga que freqüentava, em Montreal, criou o Fundo "Ronald Feld para Judeus nos Países Árabes".

Viúva, com filhos de 3, 8 e 11 anos de idade, Judy se dividia entre três empregos. Em 1974, a ativista pleiteou junto ao Departamento de Relações Exteriores do Canadá permissão de se encontrar com os judeus da Síria para melhor avaliar suas condições. O pedido foi oficialmente recusado, com base no argumento da ONU de que as informações sobre maus-tratos aos judeus na Síria eram "inflamatórias". Judy resolve, então, estruturar uma campanha para sensibilizar os políticos e a mídia à causa que abraçara. Percebe, também, que o caminho a percorrer passava necessariamente por contatos nas esferas políticas, pela rota do suborno e do contrabando de pessoas para fora da Síria. Até então, a "operação" se limitara ao envio de livros religiosos e telegramas para Damasco, Alepo e, posteriormente, Qamishli.

Em 1977 Judy ganhou um novo aliado - seu segundo marido, Donald Carr, um respeitado advogado e líder comunitário. Ela tinha apenas 33 anos quando sua missão entra em nova fase: retirar os judeus das prisões sírias e, a seguir, do país. Na verdade, Judy jamais pensou em, ela mesma, resgatar os judeus sírios. Mas, pouco antes de seu casamento com Donald, tomou conhecimento de que um senhor de idade, Toufik Srour, acabara de ser o primeiro judeu sírio, em 20 anos, a deixar o país pela via legal. Para sair teve que subornar a Muhabarat, pagando US$ 9.500 por um visto de turista para os Estados Unidos. De lá pretendia chegar ao Canadá, onde vivia sua filha, Esther. Um fato chamou a atenção de Judy. Antes que o homem deixasse a Síria, sua filha recebeu um telegrama com o seguinte pedido: "Mande-me imediatamente US$ 2.000 para acelerar a emissão do visto". Esther prontamente enviou o dinheiro. Mas, quando Toufik chegou ao Canadá, ela lhe perguntou sobre o telegrama, ao que ele respondeu que jamais o enviara. Era um sinal claro de que alguém na polícia secreta síria estava tentando verificar se havia pessoas, fora de lá, dispostas a pagar suborno pela liberdade dos judeus.

Pouco depois, Hannah Cohen contatou Judy para falar sobre seu irmão, o rabino Dahab, que ainda vivia na Síria. Quatro de seus filhos haviam conseguido fugir do país, mas depois de cada uma das fugas o rabino era preso e torturado. A violência a que fora submetido era tanta que seu rins pararam de funcionar. Judy, logo inicia uma campanha para obter sua liberdade temporária para tratamento médico. Para arrecadar recursos, ela profere palestras, até que obteve o valor necessário para pagar o resgate e retirar o rabino da Síria. O médico que o examinou, assim que chegou, afirmou que jamais vira um corpo tão maltratado. Infelizmente, o rabino Dahan não resistiu; no entanto, antes de falecer, recebeu de Judy a promessa de que tiraria sua filha Olga da Síria. Judy decide falsificar os documento do rabino Dahan como se ainda estivesse vivo, pedindo às autoridades que sua filha pudesse ir ao Canadá para cuidar do pai. O preço foi estipulado por intermediários e, Olga conseguiu sair da Síria rumo a Toronto. Era a "Mrs. Judy" em ação...

Ela já sabia, pois, que os judeus poderiam ser "comprados". Agora, o próximo passo era saber quem os sírios queriam vender, a que preço e quem tinha autoridade para fechar o acordo. "Por mais duro que seja admitir, nós estávamos comprando pessoas e o valor dependia de uma série de circunstâncias e dos indivíduos envolvidos no "labirinto do poder", em Damasco. Quem salvar, um adulto, uma criança? Pais ansiavam por ver seus filhos fora do país e enfrentavam uma separação dolorosa para que eles pudessem ter uma chance, fora da Síria".

Não há dúvida de que a polícia secreta Síria, a Muhabarat, sabia das atividades de Judy, mas não a detiveram - muito provavelmente porque não tinham interesse em acabar com aquele ingresso adicional".

Juntos, Judy e Donald e um grupo de ativistas trabalharam intensamente. Ela viajou ao redor do mundo para manter negociações secretas, sempre com o auxílio de intermediários. "Eu tinha que viver duas vidas - uma marcada por intrigas internacionais; e outra, na qual eu era mãe e tinha um dia-a-dia normal". Os riscos eram enormes, tanto para ela quanto para as famílias que tentava resgatar. Na verdade, ressalta, foi um verdadeiro milagre que eu ainda esteja viva e que nenhum dos 3.288 judeus que conseguimos de lá tirar jamais tenham sido presos".

Uma das últimas missões que coordenou foi o resgate do valioso Keter de Damasco, um manuscrito hebraico do século 14, atualmente na Biblioteca Nacional de Jerusalém.

Judy Feld-Carr sempre acreditou que a força de um único judeu pode mudar o mundo. Hoje, após ter enfrentado obstáculos, vencido barreiras e salvado milhares de vida, sua mensagem para os judeus de São Paulo e do mundo é a famosa frase de Theodor Herzl: "Se você desejar, não será um sonho"...