No final da tarde de sábado, 29 de novembro de 1947, a Assemléia Geral das Nações Unidas aprovou a partilha da Palestina e a criação de dois estados, um árabe e um judaico. Mal transcorreram 48 horas e os judeus de Alepo foram vítima de violento pogrom.

    

Sob o olhar complacente das autoridades governamentais e policiais sírias, foram incendiadas sinagogas, inclusive a Grande Sinagoga, onde estava guardado o famoso Keter de Aram Tzoba, o Códex ou Códice de Alepo, orgulho da comunidade. Ademais, foram vítima de ataque e vandalismo várias instituições judaicas, além de estabelecimentos comerciais e residências. Milhares de judeus decidem deixar a Síria. Começava o fim de uma comunidade que, segundo a tradição, se estabelecera em Aram Tzobá, nome da cidade na Torá, ainda no reinado de David, quando Joab Ben Zeruiá, seu comandante-chefe, conquistou a região. (Ver Morashá nº. 26).

O pano de fundo

Os trágicos acontecimentos de dezembro de 1947 ocorreram praticamente um ano após a França reconhecer a independência síria. Após o término da 1ª. Guerra Mundial, quando o país passou para o domínio francês, crescera, principalmente em Damasco, o nacionalismo árabe. Presente em todo Oriente Médio, este movimento se opunha ao colonialismo e à política ocidental de envolvimento no mundo árabe.

Na Síria, assim como em outros paises islâmicos, este nacionalismo acabou infectado por violento anti-sionismo e conseqüente anti-semitismo. A partir da década de 1930, após a Alemanha nazista estreitar seus laços com os líderes árabes sírios, intensificou-se no país e principalmente em Damasco a propaganda anti-judaica.

O movimento nacionalista sírio foi fortalecido ainda mais quando, em 1940, dois professores formados pela Sorbonne, em Paris, Michel Aflaq e Salah Bitar, fundam o "Movimento do Renascimento Árabe", em Damasco. Um "clube de discussões" que, em 1947, tornar-se-ia o partido Baath (ou renascimento, em árabe), até hoje no poder, na Síria. Apesar de pregar que a nação árabe devia livrar-se da nefasta influência do Ocidente, Aflaq e Bitar eram fascinados pelas idéias nazistas e o pan-germanismo. A grande admiração que o movimento nutria por Hitler, fez com que alguns grupos, como a Organização da Juventude Nacionalista Árabe, mantivessem estreito contato com a Alemanha nazista. Enquanto o país estava sob Mandato Francês, as autoridades francesas locais, mesmo na época de Vichy, defendiam os judeus de ataques de árabes extremistas.

Com a saída dos franceses, o novo governo adotou uma série de medidas restritivas contra os judeus. Entre estas, a proibição de emigrar para a então Palestina e a restrição ao ensino do hebraico nas escolas. Nas rádios e nos jornais, era cada vez mais comum a propaganda anti-sionista e anti-semita, havendo registros de atos de violência contra os judeus, em Damasco.

O crescente antagonismo entre judeus e muçulmanos, na então Palestina, cristalizara ainda mais a hostilidade contra os judeus, e o clima de tensão cresceu durante os debates da ONU sobre a partilha da região e criação de um estado judaico independente.

Durante os debates da Assembléia Geral, inúmeros delegados árabes fizeram sérias ameaças contra as comunidades judaicas desses países. Em 24 de novembro, o delegado egípcio, Heykal Pasha, declarou: "As Nações Unidas... não devem esquecer o fato de que a solução proposta pode colocar em risco um milhão de judeus que vivem em países muçulmanos... poderá vir a criar nestes países um anti-semitismo mais difícil de ser eliminado do que o existente na Alemanha... fazendo com que a ONU se torne responsável por gravíssimos tumultos e pelo massacre de grande contingente de judeus"1.

As palavras de Al-Hussayni, observador palestino na ONU, não foram diferentes. Ele alertou o plenário de que "a situação dos judeus no mundo árabe ficaria muito precária. Governos, em geral, nem sempre conseguem evitar a excitação da violência em meio às massas"2. Segundo o New York Times, já em fevereiro de 1947, Faris Al-Khuri, delegado sírio nas Nações Unidas, fizera ameaças: "Teremos dificuldade de proteger os judeus no mundo árabe".

As ameaças não eram vazias, pois, em todo mundo árabe, os políticos haviam criado um clima de histeria, ajudados pela mídia que bombardeava seus leitores com matérias sobre a "perfídia" e o "perigo" sionista.

Dias de violência

Naquele 29 de novembro de 1947, em todas as partes do mundo, os judeus estavam atentos às vozes que vinham dos aparelhos de rádio. Assim que o resultado da votação foi transmitido, houve júbilo e orações de agradecimento, por toda a parte. Milhares saíram às ruas, abraçando-se e chorando. Em Jerusalém, apesar de já ser madrugada quando terminou a votação, uma multidão dançava e cantava nas ruas. Em todo o mundo árabe, porém, a situação era tensa, sentindo-se no ar a frustração e o ressentimento que tomava conta das massas, já incendiadas pelos discursos de líderes mais exaltados.

Em Alepo, no domingo, 30 de novembro, dia seguinte à votação, a população árabe acordou calma. Apesar de ser dia de trabalho, as autoridades haviam fechado a cidade, ficando, árabes e judeus, em casa. Mas, no dia seguinte, segunda-feira, as ruas foram tomadas por grupos de árabes exaltados. O governo, que dera ordens para que nenhum judeu fosse morto ou ferido, autorizou o ataque e a destruição a qualquer propriedade pertencente a eles. Tendo recebido o sinal verde das autoridades, começam então a invadir, destruir e queimar, fossem sinagogas, locais de estudo, escolas ou residências. As lojas cujos donos eram judeus eram marcadas, para, a seguir, serem saqueadas e destruídas. A violência que se abateu sobre os judeus da cidade não poupou nem a Grande Sinagoga e nem mesmo o "Códex de Alepo".

A Grande Sinagoga é incendiada

No livro Aleppo, City Of Scholars, de autoria do Rabi David Sutton, há relatos de rabinos que testemunharam a destruição e incêndio da Grande Sinagoga, cuja parte mais antiga e ainda remanescente data do século 5 E.C.

Nas primeiras horas da manhã daquela segunda-feira, 1º. de dezembro, soldados foram deslocados para a porta e o entorno da Grande Sinagoga para protegê-la, mas os eventos que se seguiram provaram que a suposta proteção não passava de uma grande farsa.

Segundo relato do Rabino Moshe Tawil, na época diretor do Midrash Degel Torah, naquela manhã, dois líderes da comunidade, Rahmo Nehmad e Siahu Shamah, reuniram-se com o prefeito da cidade, que também ocupava o posto de chefe da polícia. Na reunião, pediram garantias e segurança para a comunidade, tendo o prefeito assegurado sua proteção contra todos os perigos que pudessem surgir. Porém, relembrou o Rabino Tawil, ao voltar do encontro, Shammah revelou ter percebido que não poderia confiar na palavra do prefeito.

Como atestou o Chacham Haim Levi - na época, diretor do Talmud Torá e que futuramente iria ocupar o posto de Rabino-chefe na Argentina - no início da tarde daquele mesmo dia, uma multidão de árabes enraivecidos foi-se agrupando nas proximidades da Grande Sinagoga, gritando: "A Palestina é nossa terra e os judeus, nossos cachorros". Essas provocações não suscitaram qualquer reação de parte das autoridades locais.

No final da tarde a sinagoga foi atacada. Os mais exaltados subiram nos ombros de outros, inclusive de soldados, para conseguir pular o muro e entrar no pátio. Assim que o fizeram, escancararam os portões da sinagoga e a multidão enfurecida varou para dentro.

Entre os que observavam os terríveis acontecimentos estavam o Rabino Moshe Tawil, que vivia no bairro de Jamileyé, e o Rabino Yitzhak Chehebar e esposa, que avistavam a Grande Sinagoga da janela de sua casa.

Em menos de meia-hora, árabes ensandecidos arrancaram 40 Torot dos setes Hechalot (Aaron Hacodesh) da sinagoga. Jogaram-nas no pátio, rasgaram os rolos sagrados e depois atearam fogo. Quase dois mil tefilin foram atirados à mesma fogueira. Os soldados, além de sequer tentar impedir a violência, incentivaram e ajudaram o vandalismo.

Quando os bombeiros chegaram para supostamente apagar o incêndio que já ameaçava alastrar-se por todo o edifício, ao invés de usar água para apagar o fogo, jogaram diesel e querosene nos textos sagrados, alimentando as chamas.

Em seguida, a turba árabe atacou casas de judeus, saqueando-as e as incendiando. A violência durou a noite inteira e somente nas primeiras horas da manhã os soldados sírios surgiram para dispersar a multidão.

O Rabino Moshe Tawil relembrou que, no dia seguinte, o prefeito e chefe da polícia - o mesmo que "garantira" tranqüilidade e segurança à comunidade - foi até o local. "Chegou com um sorriso no rosto e sua expressão não mudou quando viu a destruição. Na realidade, não parecia nem um pouco alterado com o que via, mais parecia satisfeito, e continuou a sorrir", completara em seu depoimento o pesaroso o rabino.

O Keter é salvo

O incêndio que atingiu a Grande Sinagoga danificou o Keter de Aram Tzoba, o manuscrito mais antigo que se conhece do texto completo da Torá. Zelosamente guardado há mais de 600 anos, entre suas paredes, esse Códice era mantido em um cofre de ferro, dentro do local chamado de Caverna de Eliahu Hanavi. O cuidado era tanto que pouquíssimas pessoas eram autorizadas a consultá-lo.

O Keter foi recuperado e salvo por membros da comunidade, mas por causa da confusão reinante na cidade, não se sabe ao certo a seqüência exata dos fatos. Nove diferentes relatos foram identificados pelo pesquisador Amnon Shamosh, autor do livro The Story of the Aleppo Codex.

O que se sabe é que, por alguns dias, os judeus não tiveram acesso à sinagoga, pois, após as chamas destruírem grande parte de sua estrutura, o exército assumiu o controle do local, proibindo a entrada de judeus. Segundo uma das versões, teria sido Mordechai Faham, personagem importante na história do Keter, que, disfarçado de beduíno, entrou na sinagoga e salvou o manuscrito antes que o fogo o consumisse. Em seguida, entregou-o ao shamash da sinagoga que o levou a Moshe Mizrahi, Rabino-chefe de Alepo.

Outros, porém, contam que o Keter ficou abandonado nas ruínas, durante quatro dias, até que foi permitida a entrada dos judeus no local. Os primeiros foram um grupo de rabinos que encontraram o manuscrito em uma pilha de cinzas e escombros. Nesse primeiro grupo estavam os rabinos Sadek Harari e Yaakob Attiah, além dos rabinos Moshe Tawil, Yitzhak Chehebar e Shelomo Zafrani, que, nos dez anos seguintes, desempenhariam um papel fundamental, pois foram eles que conseguiram esconder o Keter em diferentes locais até conseguir retirá-lo da cidade. Os rabinos logo constataram a falta de muitas de suas páginas; das 487 folhas originais só 295 foram recuperadas. Juntaram, contudo, todo o material e o entregaram ao Rabino-chefe Moshe Mizrahi. Este imediatamente o levou para a casa de um amigo cristão, o cônsul da Áustria. Assim que a situação se estabilizou, o precioso manuscrito foi escondido entre mercadorias, em um almoxarifado pertencente a Yaakob Hazan, secretário da comunidade. Nos dez anos seguintes, em várias ocasiões o governo sírio chegou a perguntar ao Rabino Tawil pelo paradeiro do Keter, ao que ele respondia ter sido destruído.

Em 1957, os rabinos Moshé Tawil e Shlomo Zaafrani entregaram o precioso manuscrito a Mordehai Faham que o levou secretamente para a Turquia e, de lá, finalmente, para Jerusalém, em 1958.Chegando a Israel, foi entregue ao Instituto Ben-Zvi e colocado em compartimento especial, climatizado. E em 1986 foi levado para restauração nos laboratórios do Museu de Israel, onde passou a ser exposto.

O fim de uma comunidade

Apesar de variarem os números, acredita-se que por volta de 10 mil judeus vivessem em Alepo, em novembro de 1947. O violento pogrom deixa um pesado saldo. Tinham sido arrasados 18 sinagogas, 150 residências, 50 lojas, 5 escolas, um orfanato e um centro de juventude. Haviam queimado 1.500 Sifrei Torá e um grande número de livros e manuscritos. Os prejuízos materiais da destruição foram avaliados, na época, em US$ 2,5 milhões.

Apesar de se terem registrado vários casos de solidariedade por parte de vizinhos e amigos árabes, os acontecimentos daqueles primeiros dias de dezembro de 1947 eram um sinal muito claro de que a vida judaica na Síria seria cada vez mais precária e perigosa. Milhares decidem deixar Alepo o mais rápido possível. Mais de 6 mil deixaram a cidade nos dias e meses que se seguiram, a maioria atravessando as fronteiras para a Turquia e o Líbano, onde se estabeleceram ou seguiram viagem para Israel, Europa, Estados Unidos ou América do Sul.

Deixaram a cidade, como fugitivos, clandestinamente, para nunca mais voltar. Fecharam as portas procurando não chamar a atenção dos vizinhos árabes e se foram. Deixaram tudo para trás - propriedades, lojas, dinheiro e lembranças. Não podiam levar consigo nada que despertasse a suspeita de estarem fugindo. Alguns saíram disfarçados de árabes ou beduínos. Muitos foram de trem até o Líbano ou de carro por uma das duas estradas que levavam até Beirute. Em várias ocasiões as autoridades chegaram a parar os transportes que levavam os judeus, mas, após os apelos feitos por influentes membros da comunidade judaica, mudavam de idéia, deixando-os seguir viagem.

A situação piorou após a criação do Estado de Israel, em 1948.

Os judeus se tornaram verdadeiros reféns das autoridades; as perseguições e discriminações se tornavam cada vez mais severas e comuns. Apesar da proibição de deixar a Síria, as lideranças organizaram-se para facilitar a partida. Os riscos eram grandes, pois, se capturado, um judeu que tentasse fugir podia ser executado ou condenado à prisão perpétua, em regime de trabalhos forçados. Em 1950, três anos após o pogrom, apenas 4 mil judeus ainda viviam em Alepo; em 1960 havia mil e, hoje, o número dos que lá permanecem é insignificante. A Grande Sinagoga foi parcialmente reconstruída, em 1992, e uma placa recorda os trágicos eventos de dezembro de 1947.

Bibliografia

· Beker, Avi - The Forgotten Narrative: Jewish Refugees from Arab Countries, Jewish Political Studies Review, 2005, Jerusalem Center for Public Affairs

· Rabi Sutton, David, Aleppo, City Of Scholars, Mesorah Publication Ltd