Há exatamente um século, quatro províncias do extremo sul do continente, que outrora foram repúblicas bôeres ou colônias britânicas, uniram-se para formar a nação sul-africana. Nesses 100 anos de história, os judeus contribuíram para seu desenvolvimento e, após o fim do apartheid, participaram ativamente na reconstrução e na reconciliação da nação.

A União Sul-africana

No ano de 1910, é criada a União Sul-africana, com status de Domínio Britânico, incluindo as províncias do Cabo, Natal, Estado Livre de Orange e Transvaal. Os judeus que viviam nessas áreas tornaram-se uma única comunidade e, dois anos mais tarde, os Conselhos de Cape Town e Transvaal também se unem para criar o South African Jewish Board of Deputies. Esse Board, como é conhecido, era a voz oficial da comunidade perante o governo.

Viviam na União, em 1911, 47.000 judeus, que representavam 3,68% da população branca e meros 0,79 % da população total. A comunidade passara por um processo de aculturação. A língua falada era o inglês e a educação secular tornara-seprioridade. Prova da integração judaica na nova nação é o número de judeus em cargos públicos. Entre os anos de 1907 e 1910, por exemplo, seis eram prefeitos de grandes cidades, inclusive da Cidade do Cabo e de Johanesburgo. Os vínculos judaicos, no entanto, continuavam fortes. Num país onde africânderes e britânicos se consideravam “raças” diferentes, a aculturação nunca implicou em deixar de lado qualquer aspecto da religião ou modo de vida judaico.

O nacionalismo africânder e a “questão judaica”

A década de 1930 marcou para os judeus sul-africanos o começo de um período difícil. À medida que crescia o número de judeus do Leste europeu que aportavam em terras sul-africanas, também crescia o preconceito em relação a esses judeus, a “escória semita da Europa“, como eram chamados em certos círculos.

A “questão judaica” emergiu tendo como pano de fundo o nacionalismo africânder e a difícil situação econômica resultante da Grande Depressão e da seca nas regiões rurais. Os judeus recém-chegados eram vistos como uma “ameaça que só fazia agravar o desemprego”, pelos africânderes que deixam o campo rumo à cidade, engrossando as fileiras de trabalhadores brancos que disputavam empregos com a mão-de-obra negra.

Ademais, o pró-germanismo africânder transformara-se em estreita aproximação com o nazismo. Teorias de “superioridade e pureza raciais” arianas e de inferioridade da “raça” judaica encontraram um campo mais do que fértil em uma nação aberta a todo tipo de preconceito racial. Os movimentos anti-semitas proliferam e a “questão judaica” torna-se um elemento importante na plataforma política africânder.

Em 1930 a imigração judaica da Europa do Leste é coibida com a publicação da Lei das Quotas. E, quando judeus alemães aportam no país, o governo do General Smuts, líder do United Party, passa a ser pressionado para fechar as portas a todos os judeus. A principal voz é do Partido Nacional “Purificado” de D. F. Malan, que considerava qualquer imigração judaica inaceitável e defendia o tratamento desigual aos judeus. O governo cede a essas pressões e, em 1937, é publicada a Lei dos Estrangeiros. Dos 6.500 judeus alemães que aportaram na África do Sul, entre 1933 e 1939, poucos foram os que conseguiram entrar após a promulgação dessa lei.

Apesar do anti-semitismo, no entanto, a comunidade judaica cresceu na década de 1930, tornando-se mais estruturada. Apesar de Cape Town ainda ser um importante núcleo, Johanesburgo se transformara no centro da vida judaica sul-africana.
 
No dia 6 de setembro de 1939, apesar da oposição africânder, o governo de Smuts declara guerra à Alemanha e 10 miljudeus engrossam as fileiras do exército sul-africano. Durante a guerra, cresce a hostilidade contra os judeus e inutilmente são intensificados os apelos para que se permitisse a entrada de refugiados judeus no país. A comunidade, oriunda de regiões onde os alemães haviam varrido do mapa comunidades inteiras, é atingida de forma devastadora pelas notícias sobre a Shoá. Na Lituânia, de onde se originavam a maioria dos judeus sul-africanos, 90% da população judaica fora exterminada.

O início do apartheid

No ano de 1948, dois acontecimentos marcaram a história mundial e repercutiram sobre a comunidade judaica local: a criação do Estado de Israel e o início do apartheid na nação sul-africana.

Nas semanas seguintes à votação na ONU que decidiu a Partilha da Palestina, em novembro de 1947, cerca de 800 de judeus sul-africanos – em sua maioria veteranos da 2ª Guerra – partiram para Eretz Israel na qualidade de “voluntários do exterior”, em abreviatura hebraica, Mahal.Somente os Estados Unidos e a Grã Bretanha, comunidades judaicas numericamente bem maiores, enviaram mais voluntários para lutar na Guerra de Independência.

A Independência do Estado de Israel, em 14 de maio de 1948, foi recebida com festa pelos judeus sul-africanos, que lotaram as sinagogas da nação. Entre júbilo e pranto, ouviram os acordes de Hatikva darem início ao serviço religioso em agradecimento a D’us por aquele verdadeiro milagre. No dia seguinte à criação do Estado Judeu, Chaim Weizmann escreveu: “Lembrei-me, muito merecidamente, de um dos autores vivos da Declaração Balfour” – e enviou um telegrama a Smuts, que, enquanto membro do Gabinete Imperial de Guerra, em 1917, ajudara a formular a Declaração.

Naquele mesmo mês de maio, a comunidade ficou abismada com a derrota de Smuts nas urnas e a vitória do Nationalist Party. Isto significava que o novo governo incluiria políticos abertamente anti-semitas. Dois meses após a posse do novo primeiro ministro, D. F. Malan, uma delegação do Board lhe expôs suas preocupações quanto ao lugar que teriam os judeus numa nação governada pelo Partido Nacionalista. Malan assegurou-lhes que a “questão judaica” deixara de fazer parte das “preocupações” do partido, e, como prova de boa vontade, permitiu que a comunidade enviasse ajuda material e humana para apoiar Israel em seu esforço de guerra.

A razão por trás dessa mudança era a necessidade do apoio da população branca de língua inglesa, inclusive dos judeus, para implantar seu “projeto” político. O regime instituído, chamado de apartheid – palavra que em africâner significa segregação ou divisão, visava restringir legalmente os direitos da população não-branca – negros (africanos), mulatos e asiáticos. Na nova ordem social, política e econômica do país, a cor era o principal divisor de águas; e os judeus, como parte da minoria branca, tinham seu lugar assegurado.

 Entre a comunidade judaica persistia uma sensação de vulnerabilidade, apesar das demonstrações de boa vontade por parte do governo, como a visita de Malan a Israel. De fato, ele foi o primeiro Chefe de Estado a visitar oficialmente o novo país. Essa insegurança contribuiu para a aceitação política da situação, demonstrada por grande parte da comunidade, à medida que se desenvolvia o projeto racial africânder, que, através de uma rápida sucessão de leis, faz a segregação racial permear todos os espaços e relações sociais e econômicas da África do Sul.

As leis são inúmeras; discuti-las e mesmo enumerá-las vai além do propósito deste artigo. No entanto, é importante mencionar algumas. Após as “diferenças” raciais serem juridicamente codificadas e a população ser classificada de acordo, torna-se crime o casamento entre brancos e negros ou mulatos. A separação física entre as raças entra em vigor mediante a criação de diferentes áreas residenciais. Nas cidades, negros e mulatos são obrigados a viver nas townships. Novas leis os impedem de percorrer livremente o país, além de determinar a segregação em todos os edifícios, instalações médicas e educacionais, parques e transportes públicos. Nas escolas freqüentadas por negros é criado um currículo escolar “adequado à sua natureza e necessidades”.

A maioria dos judeus, ainda que não aprovassem a política de apartheid, demonstravam sua desaprovação apenas nas urnas, votando pela oposição – o United Party. Precisa ser lembrado que assim como os demais sul-africanos, eles haviam sido criados em uma sociedade onde a segregação era a regra; um país onde o racismo e a intolerância eram a própria base da sociedade. No entanto, à medida que a segregação aumentava, apesar doBoard manter sua postura de se ater aos assuntos pertinentes à comunidade judaica e não questionar publicamente as políticas governamentais, crescem os dilemas morais causados pelo apartheid. Alguns líderes religiosos e comunitários não se mantiveram calados, mesmo conscientes dos sérios problemas que poderiam enfrentar. O mais franco em seus pronunciamentos foi o Rabino Louis Rabinowitz, Rabino Chefe da Federação das Sinagogas da República do Transvaal. Além de condenar publicamente a divisão segregacionista, rotulando-a como “uma abominação que viola a santidade da vida”, ele defendia que o Board devia abandonar o mantra de não adotar posturas políticas.

As décadas de 1950 e 1960

Em 1951, viviam na África do Sul mais de 100 mil judeus. As duas décadas seguintes foram anos de crescimento. Plenamente integrados, estavam presentes em todas as esferas da vida econômica, social e política, nas artes e nos esportes. Nos centros urbanos, foram pioneiros nos inovadores métodos do comércio, dominando rapidamente alguns campos da indústria, e muitos se destacaram nas profissões liberais. Na área da medicina, por exemplo, apesar de representarem meros 0,4 % da população total em 1960, cerca de 25% dos médicos do país eram judeus.

No final dos anos de 1960, a comunidade chega a seu zênite, atingindo 118.000 pessoas. A maioria vivia em centros urbanos, onde havia melhores oportunidades educacionais e profissionais, assim como congregações judaicas estruturadas. Viviam entre si, casando-se com membros da mesma religião, nos subúrbios das cidades, onde construíram novas sinagogas, escolas e clubes esportivos comunitários. Em um país onde o divisor de águas inglês-africânder ainda persistia entre os brancos, e onde o apartheiddeterminava a vida da população, a assimilação – tão forte na vivência judaica americana e européia – era praticamente inexistente.

O sionismo continuava sendo peça fundamental da identidade sul-africana. Nos anos após a criação de Israel, a contribuição per capita dos judeus da África do Sul para o novo Estado foi muito mais expressiva do que a de seus irmãos de outros países. A Guerra dos Seis Dias mostrou o tamanho do engajamento. Mais uma vez o contingente de judeus que foram para Israel ajudar no esforço de guerra foi proporcionalmente o maior de toda a Diáspora, e em termos financeiros, foi a comunidade que mais recursos enviou – 27 milhões de dólares arrecadados em poucas semanas.

À medida que o regime ia-se endurecendo, crescia o número de judeus presentes nas fileiras do movimento antiapartheid. Seu envolvimento, mesmo entre os grupos radicais, era infinitamente desproporcional ao seu número. Não foram poucos os encarcerados e os exilados. Entre os 156 ativistas presos e acusados, inclusive Mandela, durante o famoso “Treason Trial” – Julgamento da Traição – em 1956, apenas 23 eram brancos, e destes, 14 eram judeus. O fato de que tantos dos nossos estivessem engajados em atividades antiapartheid levou a que o governo questionasse a “lealdade” da comunidade judaica como um todo.
 
No dia 21 de março de 1960, 70 manifestantes negros foram mortos durante um protesto em Shaperville, contra a lei que impedia negros e mulatos de circular livremente, e o Congresso Nacional Africano (ANC), principal organização antiapartheid, é posto na ilegalidade. Um ano depois, presidido por Mandela, o ANC inicia a resistência armada. Detido, no ano seguinte o líder negro é condenado à prisão perpétua.

Na seqüência desses eventos, cresce a crítica internacional ao apartheid, inclusive por membros da Commonwealth britânica. Frente a essa oposição, os sul-africanos brancos, os únicos com direito a voto, decidem, em referendo nacional, a separação completa do país da Commonwealth. Em 31 de maio de 1961 é declarada a República da África do Sul.

As atitudes do governo em relação a Israel mudaram na década de 1960, em virtude dos votos do Estado Judeu na ONU, de crítica ao regime sul-africano. Esse posicionamento provoca também grande tensão entre o governo e a comunidade judaica. Uma nova aproximação entre Israel e a África do Sul vai ocorrer somente após a Guerra de Yom Kipur, quando o isolamento de Israel na região, provocado pela grande animosidade de todos os países africanos, leva a uma reaproximação entre os dois países.

As décadas de 1970 a 1990

Em junho de 1976, uma revolta de estudantes em Soweto, township de Johanesburgo, em protesto contra a imposição do africâner no currículo escolar, é reprimida pela polícia com brutalidade – 500 estudantes negros perderam a vida e dois brancos. Um destes foi Melville Edelstein, um assistente social judeu muito envolvido na comunidade negra. Nos três anos que se seguiram, a situação do país elevou a 3.000 o número de judeus que anualmente emigravam. O destino principal era Israel e os Estados Unidos.

No final de 1984, a tensão cresce ainda mais quando das grandes marchas de protesto e da luta nas ruas entre a polícia e os manifestantes. O então presidente, P.W. Botha, declara o estado de emergência, que durou até a junho de 1988, autorizando, entre outras medidas, a polícia a realizar prisões sumárias.

O  apartheid passa a ser abertamente criticado pela comunidade judaica. Em 1985 são criadas duas associações, constituídas, em sua maioria, por jovens judeus, “Judeus pró Justiça”, na Cidade do Cabo, e “Judeus pela Justiça Social”, em Johanesburgo. E, nesse mesmo ano, uma resolução do Conselho judaico condena o regime do apartheid, pedindo “iguais oportunidades e a remoção de todas as leis que discriminavam pessoas com base em sua cor e raça”. A partir daí a comunidade apóia ativamente o processo político que levaria ao fim da segregação.

Mas a instabilidade política que se instala em meados da década de 1980 leva a uma nova onda de emigração judaica. Entre 1970 e 1990, cerca de 38.000 judeus deixam a África do Sul. No final do período, 60% da população judaica do país viviam em Johanesburgo e 22% em Cidade do Cabo.

No entanto, apesar da emigração constante, os judeus tinham presença marcante em todas as áreas do país e a comunidade se mantinha vibrante assim como suas instituições – sinagogas, entidades assistenciais, movimentos sionistas e juvenis e escolas. O judaísmo e o sionismo eram elementos centrais de suas identidades e continuavam a viver e a se casar entre si, sendo que apenas 10% dos casamentos eram realizados fora da comunidade. Preocupava-os, no entanto, a situação interna da nação, à beira do abismo, e o surgimento de uma nova onda de anti-semitismo, disfarçada como anti-sionismo.

Rumo a uma nova África do sul

Assim como os outros sul-africanos, a comunidade judaica foi apanhada de surpresa, quando, no dia 2 de fevereiro de 1990, o presidente De Klerk anuncia, no Parlamento, a libertação dos prisioneiros políticos, entre eles Nelson Mandela, e a legalização da ANC. Nove dias após, Mandela saiu da prisão, depois de 
27 anos encarcerado.

No entanto, apesar do entusiasmo geral, a comunidade judaica tinha receio das mudanças que estavam por vir. Receava, também, as futuras relações do país com Israel. Seus piores pesadelos pareceram concretizar-se quando, pouco tempo após sua libertação, Mandela abraçou Yasser Arafat. Pioraram quando, antecipando as críticas da comunidade judaica, o líder sul-africano respondeu com um seco “Too bad”, algo como, “problema deles”...

Para assegurar os direitos e interesses judaicos na nova África do sul, oBoard deixou sua tradicional postura apolítica e passou não só a monitorar os acontecimentos internos como também a se envolver no processo político, participando da revisão da nova constituição do país. Uma posição importante foi o apoio à comissão criada para averiguar as omissões e crimes cometidos durante o apartheid.

“Nação do arco-íris” 
 
Em 1994, Mandela é eleito à presidência da África do Sul, tornando-se o primeiro chefe de Estado negro. Era o início da normalização da vida política e social. O novo presidente pregava a unidade do multiculturalismo e de pessoas de diferentes etnias. Ele queria ver a nação sul-africana se transformar na Nação do arco-íris, onde diferentes grupos vivessem lado a lado em harmonia e igualdade. Algo não tão simples de se conseguir numa nação com uma herança de séculos de profunda cisão racial.
 
Nos últimos anos, a comunidade judaica tem visto crescer o anti-sionismo no país, vindo principalmente da população muçulmana – mais de 650 mil em meados de 1990. O anti-sionismo chegou a seu apogeu em 2001, durante a Conferência contra o racismo, realizada em Durban. Muitos judeus ficaram preocupados com os acontecimentos. O Rabino ben Isaacson, uma forte voz durante os anos de luta contra a apartheid, chegou a afirmar que “não via futuro a longo prazo para os judeus da África do Sul”.

No entanto, hoje, com a situação interna muito mais estável do que nos primeiros anos pós-apartheid, quando a violência e o crime imperavam, os judeus sul-africanos se sentem mais seguros sobre o futuro de sua comunidade. Trata-se de uma comunidade forte, engajada e atuante, com um baixo percentual de assimilação – a já pequena taxa de casamentos mistos diminuiu para 7%. Uma comunidade cuja identidade judaica está mais fortalecida do que em qualquer outro momento da história da nação e que pode servir de exemplo para inúmeras outras da Diáspora judaica.

Bibliografia:
Shain, Milton e Mendelsohn, Richard, The Jews in South Africa: An Illustrated History, Jonathan Ball Publishers, 2009 
Shimoni, Gideon, Community and Conscience: The Jews in Apartheid South Africa ,Tauber Institute for the Study of European Jewry Series, 2003
Worden, Nigel, The Making of Modern South Africa: Conquest, Apartheid, Democracy (Historical Association Studies), 2007