Em 4 de agosto, o mundo celebrou o centésimo aniversário do Herói do Holocausto, Raoul Wallenberg. Na realidade, as celebrações em recordação desse grande homem talvez tenham sido um tanto modestas, considerando-se sua contribuição à humanidade e ao humanitarismo. Sim, realizou-se um simpósio em final de junho no Yad Vashem, o Museu do Holocausto fundado em 1953 em Jerusalém, onde ele é homenageado como um Justo entre as Nações, com uma árvore e uma modesta exposição.

Sim, realizou-se um simpósio em final de junho no Yad Vashem, o Museu do Holocausto fundado em 1953 em Jerusalém, onde ele é homenageado como um Justo entre as Nações, com uma árvore e uma modesta exposição. Mas quando visitei o museu no início de julho último, não encontrei um livro sequer sobre ele na livraria nem qualquer menção especial a uma comemoração deste quilate. Por outro lado, tive a nítida impressão de que enquanto Wallenberg era bastante conhecido na década de 1980, particularmente após uma minissérie de televisão com o ator Richard Chamberlain, e na década de 1990, quando ruas, monumentos e estátuas lhe eram dedicados, hoje, boa parte do reconhecimento público de seu singular prestígio entre os heróis do Holocausto foi ofuscado pelo sucesso do filme A Lista de Schindler.

No entanto, Wallenberg precisa ser lembrado como a pessoa que salvou mais vidas judias durante o Holocausto, como o responsável por ter salvo aproximadamente 100 mil judeus em Budapeste durante o breve período de seis meses, entre julho de 1944 a janeiro de 1945, quando foi preso pelo vitorioso Exército Vermelho, em seu avanço por Budapeste, e desapareceu atrás de um muro de silêncio erguido pelos soviéticos. O que torna o papel de Wallenberg duplamente emocionante não é apenas o fato de ter usado todos os meios pessoais e diplomáticos a seu dispor para salvar judeus, mas sim, o de ter-se tornado vítima de uma tirania igualmente brutal, que nenhum poder na terra foi capaz de salvar da forma como ele salvara seres humanos. Ele passou de herói a vítima e seu destino se tornou, então, um veículo para que milhares de pessoas a quem ele inspirara, tentassem resgatar. Não sendo isso possível, o único caminho que nos resta é o da lembrança e da homenagem.

Quem foi Wallenberg e como se tornou um salvador de vidas judias? Wallenberg era sueco, filho de uma das famílias mais proeminentes e ricas entre os banqueiros e industriais da Suécia, que teve uma vida privilegiada na infância, apesar da tristeza de ter crescido sem seu pai, que morreu de câncer antes dele nascer. Estudou em Paris e nos Estados Unidos, como aluno da Faculdade de Arquitetura da Universidade de Michigan, onde se graduou, tendo viajado extensivamente pelo país nessa época. Trabalhou em comércio exterior e na área bancária primeiro na África do Sul e, posteriormente, em Haifa, Israel. Retornando à Suécia em 1936, trabalhou em uma trading de propriedade de um judeu húngaro, Kalman Lauer. Como as leis antijudaicas na Hungria impediam que esse senhor voltasse ao país, Wallenberg viajava frequentemente a Budapeste a trabalho e para ajudar a família do Sr. Lauer e acaba adquirindo sociedade na empresa.

A perseguição aos judeus húngaros se tornou mais desesperadora quando a Alemanha decide que o governo pró-nazistas estava negociando secretamente com os aliados e invade a Hungria, em março de 1944, iniciando uma deportação “por atacado” dos judeus húngaros. Ainda que muito do Holocausto fosse desconhecido ou ignorado até esse ponto, a preocupação dos Estados Unidos e do Ocidente pelos judeus aumenta com a publicação de relatórios dos campos de concentração, e o Presidente Franklin Delano Roosevelt, dos EUA, cria o Conselho de Refugiados de Guerra (WRB). O Conselho envia um emissário à Suécia para pedir que o governo neutro nomeie um indivíduo para sua Embaixada em Budapeste, cuja responsabilidade seria salvar os judeus remanescentes na Hungria. O jovem Wallenberg, indicado por seu sócio, Lauer, membro proeminente da comunidade judaica sueca, foi a escolha óbvia quando a Suécia concordou em enviá-lo como cônsul à Hungria, com privilégios diplomáticos.

Chegando a Budapeste, Wallenberg não perde tempo em sua missão de salvar judeus. Emite-lhes passes especiais, declarando-os sob a proteção do governo sueco. Apesar do limite imposto pelo governo húngaro, ele o excedia em grande escala. Criou também, apartamentos para judeus sob a proteção sueca, reconhecidos pelo governo húngaro, e, posteriormente, pelos ocupantes nazistas. Fazia uso de um vasto fundo em dólares fornecido pelo Conselho Americano de Refugiados de Guerra para “convencer” as pessoas a concordar com ele. Wallenberg salvava os judeus de serem despachados aos campos de concentração, realmente arrancando – ele próprio – as pessoas para fora dos vagões de gado. Ele também os arrastava para fora das abjetas “marchas da morte”. Uma das histórias mais fascinantes das atividades de resgate de Wallenberg foi que esse humanitário quase puro foi confrontado por um dos adversários mais malignos possíveis, em Budapeste: ninguém menos do que Adolph Eichmann. Logo que Wallenberg foi enviado a Budapeste para salvar judeus, Eichmann, que, um quarto de século mais tarde seria sequestrado na Argentina por Israel para ser julgado e enforcado por crimes de guerra, recebera a incumbência de justamente exterminar os mesmos judeus. Como um jovem oficial, foi Eichmann quem tomou as anotações na infame Conferência de Wannsee, de líderes nazistas, na qual a “Solução Final” para a “Questão Judaica” foi oficializada  .Os dois homens chegaram mesmo a ter um dramático jantar, juntos – um verdadeiro teste para sua vontade de confrontar-se e sobrepujar-se, um ao outro.

A história de Wallenberg segue adiante em virtude da estranha maneira pela qual ele sai de cena e a incapacidade das autoridades russas em esclarecer plenamente se, onde e como ele teria falecido, apesar de termos que pressupor que ele não poderia continuar vivo, com 100 anos, nas implacáveis condições das prisões do Gulag soviético. Tampouco faria sentido para os russos, com o fim da União Soviética há mais de 30 anos, continuar a mantê-lo, propositalmente. O grupo de defesa pró Wallenberg de maior destaque, o Comitê Wallenberg dos Estados Unidos, não apenas apregoou seu papel de herói, mas também tem sido o maior paladino junto com alguns membros de sua família no empenho por encontrá-lo ou sequer obter informações acerca de seu paradeiro. Esse Comitê jamais aceitou qualquer das explicações oficiais do destino final de Wallenberg, pois estas sempre foram maculadas, de alguma forma. As primeiras informações soviéticas sobre sua morte na prisão, em 1947, foram desmentidas por inúmeros relatos de seus companheiros de cárcere, que alegaram tê-lo encontrado ou visto posteriormente a essa data. Apesar de os soviéticos originalmente alegarem que ele morrera de um ataque do coração, em 2000, o novo governo russo admitiu que ele havia sido executado. A família de Wallenberg, no entanto, nunca aceitou tais explicações sem alguma evidência comprovada por documentos, mas as autoridades russas afirmam que tais documentos foram destruídos nos expurgos de Stalin.

Qual o significado de Wallenberg? A lição fundamental é que todo ser humano é responsável pelo resto da humanidade. Uma pessoa pode fazer a diferença. O Talmud diz: “Quem destrói uma alma, é considerado como se tivesse destruído o mundo inteiro. E quem salva uma vida, é considerado como se tivesse salvo o mundo inteiro”. John Donne, o poeta inglês do século 18 escreveu: “Nenhum homem é uma ilha, isolado em si mesmo; todo homem é um pedaço do continente... A morte de qualquer homem me diminui, porque sou parte do gênero humano, e por isso não me perguntes por quem os sinos dobram; eles dobram por ti”. Neste poema se inspirou Ernest Hemingway, em seu romance mais popular, sobre a Guerra Civil espanhola. A famosa citação de Sir Edmund Burke, “Tudo o que é necessário para o triunfo do mal é que os homens de bem nada façam”, é, via de regra, identificada com o legado de Wallenberg. Ao contrário da maioria do gênero humano, ele estava disposto a se sacrificar para salvar seus semelhantes.

A história de Wallenberg é profundamente ligada à questão do Holocausto. Como pôde um tal assassinato em massa, brutal, organizado e desumano, ser executado pelo governo do que era, até então, considerado um país “civilizado”, com o apoio de tantos de seus concidadãos e outros tantos colaboracionistas espalhados por toda a Europa? Mas não se pode entender o Holocausto sem entender a história do povo judeu e do antissemitismo, dos guetos e dos direitos restringidos. Não se pode entender a importância da criação de Israel como Lar Nacional dos judeus ou a história do sionismo sem entender a história que conduziu ao Holocausto e que comprovou que os judeus jamais estariam a salvo sem ter sua própria Pátria. Minha recente viagem a Israel, a primeira em 40 anos, me deu uma clara ideia da luta dos judeus ao longo de milhares de anos em busca de sua própria identidade e sobrevivência. Contudo, apesar de ser o mais chocante e horrendo genocídio de toda a humanidade, a Shoá também serviu como lição para o futuro, fazendo surgir o brado raivoso de “Nunca mais!”.

Infelizmente, “Nunca mais” não serviu de compromisso suficiente para deter outros genocídios na Bósnia, Ruanda e, em escala menor, em conflitos étnicos por toda a África e, agora, no Oriente Médio. Ditadores usam seus exércitos para esmagar revoluções populares pacíficas. O mundo reagiu na Líbia. Mas teve um pouco mais de trabalho para lidar com o assassinato de milhares de civis na Síria. Em última análise, os problemas estratégicos internacionais sempre irão retardar ou evitar que a comunidade internacional, que opera através das Nações Unidas, se posicione e confronte os assassinatos em massa. Apesar de que muitas vezes, também dependa da boa vontade até mesmo de governos democráticos de se disporem a dedicar verbas gigantescas e vidas, no caso de uma intervenção no exterior. Dá para entender o desgaste de guerra, digamos, dos Estados Unidos, após lutar as guerras do Iraque e Afeganistão. No entanto, moralmente não se pode adotar a posição de que estamos muito cansados para sair em defesa dos indefesos e apoiar uma mudança pacífica e democrática. Quando dissemos “Nunca mais”, estávamos falando a verdade! Mas, podemos ser honestos com nossa consciência quando confrontados com crises difíceis e onerosas?
Mas, voltemos a Wallenberg. Qual a sua conexão com o Brasil e como me envolvi no empenho para torná-lo conhecido no País? Fiquei totalmente arrebatado com sua história quando a li, pela primeira vez, no início da década de 1980. Sendo neto de imigrantes judeus húngaros aos Estados Unidos, no início do século 20, fiquei comovido com o destino dos judeus húngaros durante o Holocausto e o papel de Wallenberg em salvar os que tinham sobrevivido. Meu interesse também foi impulsionado pela vergonha com a atitude dos países do Ocidente, que nada fizeram para salvar os judeus na Europa antes que se formasse o Conselho de Refugiados de Guerra, que decidiu recrutar Wallenberg. Como diplomata americano, com certo envolvimento no combate ao fascismo na América Latina – estive envolvido na Bolívia na captura de Klaus Barbie e na prisão e extradição do terrorista fascista italiano responsável pela explosão na estação de trem em Bolonha, Itália, em 1980, também admirava as habilidades diplomáticas de Wallenberg ao conseguir arrancar os judeus de Budapeste das garras dos carrascos nazistas.

Àquela época, antes de ser destacado para servir no Brasil pela segunda vez, em 1985, mantive contato com o Comitê Raoul Wallenberg dos Estados Unidos, especialmente com sua Diretora Executiva, Rachel Ostreicher, que me informou que eu poderia contatar um dos antigos colegas suecos de Wallenberg enquanto servia em Budapeste, que, na ocasião, era o Cônsul Geral da Suécia no Rio de Janeiro. Eu, na verdade, somente cheguei ao Rio em 1987, porque inicialmente fui designado para chefiar o Consulado americano na Bahia. Mas, antes de chegar ao Rio, tinha tido a grande oportunidade de assistir a uma palestra, em São Paulo, do então recém-agraciado com o Prêmio Nobel, Elie Wiesel, que me serviu de grande inspiração. Elie Wiesel enfatizara a importância da memória. Portanto, ao chegar ao Rio, encontrei-me com Lars Berg, que me deu todas as suas anotações sobre Wallenberg e eu tomei a decisão de que faria todo o possível para promover a memória de Wallenberg, que já havia sido declarado Cidadão Honorário dos Estados Unidos – o único além de Winston Churchill.

Inicialmente, meu envolvimento foi bastante inocente. Quando um diplomata judeu americano sai em missão no exterior, geralmente é convidado pela comunidade judaica local para lhes falar sobre algum assunto. Diante de tal convite, eu respondi que o único assunto que me interessava discutir era o caso de Raoul Wallenberg e seu inexplicado desaparecimento. Iniciando com uma palestra para a B’nai B’rith de São Paulo, fui também convidado para falar para a B’nai B’rith do Rio e para a Ordem dos Advogados do Brasil. De repente, estava eu falando sobre Wallenberg para uma estação de rádio e para a televisão.

Até que, minhas conversas com membros da Câmara de Vereadores do Rio de Janeiro, especialmente com a então Vereadora Neuza Amaral, muito sensível à causa judaica, levaram à aprovação de uma lei que criou a Praça Raoul Wallenberg. Mas eu não me iludia, aprovar a lei era uma coisa, mas os recursos para construir a praça, eram outra. Quis o destino que um dia em que eu almoçava com o Cônsul Lars Berg no então restaurante Rio’s, no Aterro do Flamengo, quando o Prefeito da Cidade, Marcello Alencar, se aproximou. Eu tinha-me tornado bom amigo do Prefeito antes mesmo de sua eleição e o apresentei a Berg, contando-lhe de quão esperançosos estávamos de ver a “nossa” Praça Wallenberg ser erguida. Naquele interim, eu tinha andado procurando o melhor lugar para a tal da praça, e tinha tido a ideia de falar com o jovem rabino brasileiro e carioca, Nilton Bonder. Este sugerira um terreno adjunto à sua sinagoga, na Barra da Tijuca, a Congregação Judaica do Brasil. Entabulamos, então, as negociações com os vizinhos do terreno, que era usado como um campo de futebol pela garotada da vizinhança. Sugeri que mantivéssemos a praça como local de esportes e juventude, desenvolvendo o campo de futebol e montando mesas de xadrez e equipamentos de ginástica. A ideia foi aceita por todos.

Pouco tempo depois, minha missão no Rio chegava a seu fim. Tive outro encontro com o Prefeito, no qual ele me disse: “Não se preocupe, Daniel, vamos construir a sua praça”. Fiquei entusiasmo, mas deixei o Brasil sem saber o que iria acontecer. Portanto, fiquei muito surpreso e feliz ao receber um telefonema, um ano depois, em 1992, do Rio, me informando que a praça ia ser inaugurada dali a algumas semanas. Pediam-me que redigisse o texto da placa comemorativa, o que fiz com grata satisfação. Infelizmente não pude ir ao Rio para o evento inaugural, mas recebi fotos e relatórios e escrevi um breve artigo para a Revista do Departamento de Estado dos EUA. A placa foi roubada inúmeras vezes apenas pelo valor do bronze no qual é confeccionada, sendo sempre refeita. A Praça Wallenberg ainda existe, apesar de provavelmente não ter recebido muita atenção nestes últimos 20 anos. No entanto, o Rabino Bonder me contou, recentemente, que a Praça continua intacta e que com a expansão de sua sinagoga, ficará ainda mais integrada à vida de sua congregação. Seria realmente uma bênção se seu nome aparecesse nos mapas da cidade, fazendo jus a quem lhe deu o nome.

Wallenberg continua vivo em outro sentido. Minha mulher e eu vivemos, hoje, em Norfolk, Virgínia, onde uma comunidade judaica pequena, mas vibrante, mantém as instituições locais. Nossa própria sinagoga, a Beth El, tem mais de 150 anos, e é uma das oito primeiras sinagogas que fundaram o Movimento Conservador Americano. A celebração anual do Dia do Holocausto consegue encher o recinto com os membros locais e os honrosos sobreviventes que vivem na redondeza e muitos alunos e professores que estudam o Holocausto como parte de um programa educacional patrocinado pela Comissão do Holocausto. Este ano, em uma cerimônia realizada em nossa sinagoga, o principal orador foi Thomas Weisshaus, um dos judeus húngaros salvos ainda menino por Raoul Wallenberg. Conheci, também, outra mulher jovem cuja família inteira também foi salva por Wallenberg. Cada uma dessas pessoas, mundo afora, deve sua existência a Raoul Wallenberg. Que melhor tributo poderia haver em sua memória?

Daniel Strasser aposentado é diplomata americano .
Foi Cônsul no Rio de Janeiro e Salvador (BA). Atualmente, Strasser é analista político e expert em governança sob contrato para o Estado Maior Conjunto das Forças Armadas dos EUA, Diretório de Exercícios e Treinamento, com sede em Hampton Roads, Virginia.