Há cem anos, no dia 4 de julho de 1904, milhares de pessoas tomadas por devotada emoção acompanharam, nas ruas de Viena, o funeral de um jovem de 44 anos de idade, Theodor Herzl, advogado, jornalista, dramaturgo e estadista, embora jamais tivesse chefiado um estado.

Um mês antes, ele havia sido internado no sanatório austríaco Edlach, deprimido e debilitado. Os médicos não chegaram logo a um diagnóstico, mas no dia 1º de julho o paciente apresentava um nítido quadro de pneumonia. No dia seguinte, recebeu a visita de um amigo, o reverendo William Hechler, capelão da embaixada inglesa em Viena, a quem balbuciou: "Mande lembranças à Palestina, por mim. Dei meu coração e meu sangue pelo meu povo". Às cinco da tarde do dia 3 de julho, Theodor Herzl partiu para a eternidade. O incipiente movimento sionista ficou em estado de orfandade e perplexidade. Milhares de telegramas, vindos de todas as partes do mundo, de judeus e de não-judeus, foram endereçados à sua família. Naquele momento, a milhares de quilômetros dali, na pequena cidade polonesa de Plonsk, um rapaz de 18 anos, chamado David Green, escreveu para um amigo: "Que perda terrível. Porém hoje, mais do que nunca, sei que nós vamos triunfar. Sei que chegará o dia - e este dia não está muito longe - quando voltaremos para nossa terra maravilhosa, a terra da verdade e da poesia, a terra das rosas e das visões proféticas". Poucos anos mais tarde, esse adolescente trocaria seu nome de David Green para David Ben Gurion.

Em um de seus escritos, Herzl havia pedido para ser enterrado num caixão de metal, ao lado do pai, "até que um dia o povo judeu leve meus restos mortais para a Palestina". Foi com sentimentos mistos de júbilo e de tristeza que, em 1949, seu pedido pôde ser concretizado. Ele repousa no alto do monte Herzl, de onde se descortina uma das mais belas vistas de Jerusalém. Contudo, seu corpo não foi levado para a Palestina, mas para o recém-estabelecido Estado de Israel, a nação independente e soberana, germinada e impulsionada por sua ação e visão.

Foi para este país imaginário, do qual ele sequer chegou a ser cidadão, que Theodor Herzl dedicou os últimos nove anos de sua curta vida, ou seja, desde 1895, quando publicou um livro intitulado "O Estado Judeu", acrescido de um subtítulo, "Tentativa de uma Solução Moderna para a Questão Judaica". Não era uma obra de alcance literário. Tratava-se de uma descrição objetiva, passo a passo e viável, sobre a maneira pela qual os judeus poderiam retornar à sua pátria ancestral e que tipo de sociedade lá formariam.

Este livro causou um impacto sem precedentes no mundo judaico daquele fim do século 19. Até então, os judeus só falavam sobre o anti-semitismo em círculos fechados e a maioria até fingia ignorá-lo para não atrair a atenção de inimigos hostis. Herzl, entretanto, denunciou o anti-semitismo como ninguém havia feito e deu-lhe um desdobramento efetivo, de audácia pessoal, ao inserir essa questão no entrechoque das grandes potências de sua época. Antes dele, somente o judeu russo, Leon Pinsker, encarara o problema de forma semelhante, no livro "Auto-emancipação". O próprio Herzl admitiu que se o tivesse lido, talvez não tivesse escrito "O Estado Judeu" que, logo depois de publicado, teve edições em inglês, russo, ídiche, hebraico, francês e espanhol. A propósito, o jornal inglês Jewish Chronicle publicou em seu editorial: "Um Moisés acaba de surgir. Ele se chama Theodor Herzl". Contudo, isso não foi unanimidade.

Em Viena, ele teve o apoio de Freud, do dramaturgo Arthur Schnitzler, de Stefan Zweig e de associações de estudantes judeus. Mas também foi ridicularizado, tendo sido assinalada uma declaração de um rico industrial judeu nos seguintes termos: "É claro que apóio a criação de um estado judeu. Contanto que eu seja o embaixador na Áustria". O intelectual Nahum Sokolow, que depois se tornou um importante líder sionista, assim reagiu: "A rigor, temos apenas um folhetinista de Viena, brincando com a diplomacia".

Benyamin Zeev Herzl nasceu em Budapeste no dia 2 de maio de 1860, filho de Jeannete e Jacob, uma família da classe média alta. Quando completou 18 anos de idade, mudou-se com os pais para Viena, onde se naturalizou austríaco. As biografias tradicionais de Herzl sempre incorreram em dois equívocos básicos. O primeiro foi no sentido de afirmar que ele era um judeu assimilado, o que não corresponde nem de longe à verdade. Sempre foi um judeu consciente e preocupado com o destino de seu povo. Antes ainda de elaborar "O Estado Judeu", quando era correspondente em Paris do jornal Neue Freie Presse, escreveu uma peça de teatro intitulada "O Novo Gueto", que assim justificou para um amigo escultor: "Não adianta a um judeu ser um artista, como você. Como artista, você se livrou da tirania do dinheiro. Você não é um usurário, nem um judeu da bolsa de valores. Mas a maldição o continua perseguindo. A verdade é que nós não conseguimos sair do gueto".

O segundo erro dá conta de que Herzl só despertou para o problema judaico enquanto cobria o processo do capitão Dreyfus, um judeu francês injustamente acusado de espionagem e cujo julgamento teve um caráter nitidamente anti-semita. Na verdade. no início do processo, Herzl chegou a admitir que Dreyfus poderia ser mesmo culpado e sequer enfatizou sua condição judaica nas reportagens que escreveu. Também não foi o anti-semitismo francês que o preocupou, porque, em 1894, pouco mais de cem mil judeus viviam na França. O que de fato o mobilizou, foi a forte emergência de diversos nacionalismos europeus que poderiam gerar perseguições e, por conseqüência, grandes levas de refugiados oriundos do leste da Europa. Herzl via a Alemanha e a Áustria como o epicentro do anti-semitismo e sentia a decadência do império austro-húngaro, que vinha sendo um refúgio quase tranqüilo para mais de dois milhões de judeus. Foi quando nele se solidificou a idéia e a consciência da solução territorial-nacional para o problema judaico e que resultou em seu livro revolucionário, cujo prefácio é de absoluta clareza.

"Estou profundamente convencido de que tenho razão. Ignoro se, no curso da minha vida, terei ganho de causa. Os primeiros homens que começarem este movimento talvez não cheguem a ver seu fim glorioso. Mas, já no princípio desta nova tentativa, sentem um enorme orgulho que, ligado à felicidade da liberdade interior, enobrece a sua existência. Quanto a mim, considero a minha tarefa concluída com a publicação deste escrito. Só retomarei a palavra se adversários dignos de atenção me obrigarem a responder a seus ataques ou se for necessário refutar objeções imprevistas ou esclarecer enganos. Se a geração atual ainda é muito estreita de visão, outra virá, melhor e superior. Os judeus que quiserem, terão seu estado e farão por merecê-lo".

Mais adiante, na introdução, Herzl formula um princípio legado para a posteridade: "A questão judaica existe por toda parte onde os judeus vivem, por menor que seja o seu número. Creio compreender o anti-semitismo, que é um movimento muito complexo. Em minha qualidade de judeu, encaro o anti-semitismo sem ódio e sem medo. Para resolver a questão judaica, é preciso transformá-la numa questão política universal, que deverá ser regulada pelos conselhos dos povos civilizados. Na noite de sua história, os judeus não deixaram de sonhar com este sonho real: 'no ano que vem, em Jerusalém'. Esta é a nossa antiga palavra. Trata-se agora de demonstrar que o sonho pode-se transformar num pensamento luminoso".

No ano seguinte ao da publicação de "O Estado Judeu", Theodor Herzl dedicou-se a desenvolver seu plano de atingir a consciência universal. No círculo judaico, obteve o apoio de um comerciante milionário de Colônia, David Wolfson, que viria a ser seu braço direito e sucessor. Em Paris, buscou o apoio do clã Rothschild, mas saiu de mãos vazias. Em Viena, o reverendo Hechler, que encarava a volta dos judeus à Palestina como uma profecia bíblica, conseguiu-lhe uma entrevista com o Grão-Duque de Baden, que serviria de ponte para uma audiência com o imperador Bismarck, da Alemanha. Não foi atendido e só chegou a falar com Bismarck em 1902, quando visitou a Palestina. Em junho de 1896, rumou a Constantinopola, pagando a viagem do próprio bolso, pretendendo um encontro com o sultão do império Otomano. Foi recebido pelo ministro das relações exteriores, a quem fez uma proposta insólita: trocar terras da Palestina otomana pela dívida externa da Turquia, cabendo-lhe a tarefa de fechar a transação com os credores. Mas, o assunto morreu na mesma hora em que nasceu. Mesmo assim, o sultão enviou-lhe uma condecoração, pedindo que ele intercedesse junto à mídia internacional que atacava a Turquia por causa da questão armênia. Em seguida, enquanto percorria a Europa em busca do apoio de reis e chefes de estado, incluindo o Papa no Vaticano, Herzl começou a preparar o primeiro Congresso Sionista Mundial, marcado para agosto de 1897, na cidade da Basiléia, Suíça. A este trabalho dedicou total entusiasmo, preocupando-se com os mínimos detalhes, ao mesmo tempo em que sofria as mais diversas objeções. Houve quem dissesse que ele não passava de um jornalista fracassado, que procurava obter vantagens financeiras através do sionismo.

O Conselho Rabínico da Alemanha fulminou-o com um parecer contrário, afirmando que o estabelecimento de um estado judaico era incompatível com a promessa messiânica. A comunidade judaica de Nova York considerou que um estado judaico levaria os judeus do mundo inteiro a uma desagradável situação de dupla lealdade.

A Basiléia estava imersa num terrível calor quando Herzl ali desembarcou, no dia 25 de agosto. Seu pelotão de frente havia reservado para o congresso o primeiro andar de uma cervejaria, transformada em salão de ginástica. Herzl, que tinha forte senso teatral e sabia da importância de ter um cenário imponente, mandou cancelar tudo e alugou o salão principal do Cassino Municipal da Basiléia. Exigiu que os 208 delegados de 16 países se apresentassem para a cerimônia inaugural com trajes formais escuros e colarinhos brancos. Seu amigo Wolfson improvisou uma bandeira com faixas azuis protegendo a Estrela de Davi. No sábado, acompanhado de Max Nordau, compareceu à sinagoga onde foi chamado para ler a Torá.

No domingo, dia 29, às dez horas da manhã, o rabino Lippe, da Romênia, sionista da primeira hora, fez a oração do Schehecheianu, o agradecimento ao Todo Poderoso por tê-los conduzido com vida até aquele dia. Quando Theodor Herzl, jovem desenvolto, postura firme, alto, belas feições emolduradas por uma longa barba negra, entrou no salão rumo ao pódio, houve um delírio. Delegados se atiraram ao seu encontro para beijar-lhe as mãos e um deles gritou em hebraico: "Viva o rei"! A ovação durou quinze minutos. Em seguida, ele discursou: "Desde tempos imemoriais o mundo tem sido mal informado a nosso respeito. O anti-semitismo sempre nos fortaleceu. O sionismo é o retorno ao judaísmo, antes mesmo do nosso retorno à pátria judaica".

À noite, sozinho no quarto do hotel, escreveu em seu Diário: "Se eu tiver que resumir num conceito - e me reservo de não pronunciá-lo publicamente - seria o seguinte: na Basiléia eu fundei o Estado Judeu. Se eu disser isto em voz alta, hoje, terei como resposta o riso universal. Mas, talvez em cinco anos, e certamente em cinqüenta anos, todo o mundo o admitirá". E sua profecia se concretizou de forma precisa: em 1947, cinqüenta anos depois do primeiro Congresso Sionista Mundial, a Assembléia Geral das Nações Unidas aprovou a partilha da Palestina, o virtual nascimento de um estado judeu.

Dentre dezenas de passagens eloqüentes, o Diário de Herzl, duas mil páginas publicadas em cinco volumes depois de sua morte, contém duas anotações emocionantes. Uma, escrita ainda na Basiléia: "A fundação de um estado se baseia na vontade do povo de ter um estado. Este, mesmo quando possui um território, é algo abstrato. Na Basiléia, criei essa abstração que, como tal, é invisível para a grande maioria do povo e tem pouco significado. Gradualmente, conduzi o povo ao sentimento de espírito de um estado e fiz com que julgasse que se encontrava numa verdadeira assembléia nacional". E a última de todas, no epílogo: "Algum dia, quando o Estado Judeu for uma realidade, tudo parecerá trivial. Talvez um historiador lúcido venha aescrever que um pobre jornalista judeu, no momento da maior degradação de seu povo e do mais abjeto anti-semitismo, transformou um trapo numa bandeira, transformou uma turba decadente num povo, e foi capaz de envolver este povo nesta bandeira".

Zevi Guivelder é escritor e jornalista