A norte-americana Alana Frey teve uma singela e vigorosa idéia para marcar o seu bat-mitzvá. Decidiu pedir a amigos e parentes que escrevessem o que significava, para cada um deles, ser judeu. As respostas seriam enviadas para o pequeno Adam Pearl, hoje com cerca de três anos de idade. Adam é filho de Daniel, o jornalista do "Wall Street Journal", morto no Paquistão por terroristas islâmicos.

"Eu sou judeu", pronunciou Daniel, em suas últimas palavras antes de ser barbaramente assassinado. A frase de Daniel, registrada em vídeo pelos assassinos, continua a reverberar. "Meu pai é judeu, minha mãe é judia, eu sou judeu". Na visão de Judea Pearl, pai do jornalista seqüestrado e morto no começo de 2002 quando fazia reportagem sobre o fundamentalismo islâmico, o pronunciamento derradeiro de Daniel poderia servir como catalisador para que judeus "refletissem, questionassem, ponderassem, analisassem" sua identidade judaica. Inspirados pela idéia da jovem Alana Frey, Judea e sua mulher, Ruth, resolveram editar o livro "Eu sou Judeu - Reflexões pessoais inspiradas pelas últimas palavras de Daniel Pearl".

Trabalho hercúleo, a obra reúne 150 depoimentos. De celebridades a jovens anônimos. De rabinos a ativistas políticos. De jornalistas a artistas. De cientistas a esportistas. Uma generosa variedade de visões e de expectativas, de leituras e de prioridades, mas todas apoiadas em três palavras e no legado de Daniel Pearl: "Eu sou judeu". O livro, apesar de ser uma intensa viagem por mentes e corações judaicos, desde o início alerta para o fato de não carregar a intenção de ser uma amostragem científica sobre a diversidade do povo judeu. Realmente faltam algumas vozes, o que não empana o trabalho e seu principal mérito: mostrar a solidez da identidade judaica, e a unidade construída por um povo ao longo de milênios.

Moshe Katsav, presidente de Israel, escreveu: "Ser judeu significa uma perspectiva sobre assuntos globais apoiada em princípios judaicos baseados na Bíblia. Ser judeu significa pertencer a uma fé que deu à humanidade a crença em um D´us Único e valores universais que têm acompanhado a humanidade desde a fundação dessa nação, 3.313 anos atrás, no Monte Sinai, quando santificamos nossa fé e recebemos os Dez Mandamentos". Nascido no Irã e vivendo em solo israelense desde os cinco anos de idade, Katsav contribuiu para a iniciativa de descrever quem é judeu: "Aquele que pertence a uma nação que, por dois mil anos, experimentou sofrimento contínuo, expulsão, conversões forçadas, exílios, inquisição e, pior de tudo, o terrível Holocausto perpetrado pelos nazistas e seus colaboradores. O Povo Judeu se levantou das cinzas e teve sucesso em reviver e obter soberania e independência em sua terra natal". O presidente constatou, então: "Nenhum evento na história da humanidade é similar ao do povo judeu".

Outra personalidade israelense, Shimon Peres, destacou a contribuição à história da humanidade. "O judaísmo foi o primeiro a condenar idolatria e escravidão", lembrou o atual vice-premiê. Se Katsav e Peres, em alguns momentos de sua definição, miraram o passado, o líder trabalhista Avraham Burg olhou também para o futuro. "Nossa missão é manter a força e a continuidade do judaísmo, e cada um de nós tem um papel em modelar e continuar o futuro. Como retorno, ele nos dá um significado - uma identidade neste mundo".

O rabino Israel Meir Lau, ex-rabino-chefe de Israel, mencionou em seu texto a importância dos valores e dos ideais que Daniel Pearl recebeu de seus antepassados, muitos de tradição chassídica, entre eles um dos fundadores da cidade israelense de Bnei Brak. Assim como o rabino Lau, o rabino Jonathan Sacks, rabino-chefe do Reino Unido, também destacou valores religiosos e a fé como os alicerces da identidade judaica. Sacks acrescentou ainda: "Tenho orgulho de fazer parte de um período em que o meu povo, destruído pelo pior crime jamais cometido contra um povo, respondeu fazendo renascer uma terra, recuperando sua soberania, salvando judeus ameaçados ao redor do mundo, reconstruindo Jerusalém e provando ser tão corajoso na busca da paz quanto ao se defender durante a guerra".

Na leitura do "Eu Sou Judeu", solidificou-se ainda mais em mim uma imagem que me ajuda a entender a identidade judaica. Costumo compará-la a um caleidoscópio. Para todos, existem os mesmos pedaços de vidro. No entanto, cada um, ao olhar no artefato, pode ver uma imagem diferente. Entendo a identidade judaica de forma semelhante: a partir dos valores e tradições comuns a todos, cada um monta o seu próprio cenário, sempre dentro do universo judaico. Estamos todos dentro do mesmo caleidoscópio, podemos ter prioridades ou ênfases diferentes, mas somos todos parte "de uma enorme família", como definiu Amanda, de Geórgia (EUA), em seu depoimento na homenagem a Daniel Pearl.

No meu caleidoscópio judaico, naturalmente me interesso muito pela relação entre nossos valores e a atividade jornalística, que também marcou a vida de Daniel Pearl. Daniel Schorr, veterano e premiado jornalista norte-americano, resumiu em uma sentença um dos aspectos dessa relação: "Nós, judeus, somos aqueles que buscam a verdade".David Horovitz, editor da revista "The Jerusalem Report", se descreveu como um dos "afortunados herdeiros de séculos de tradição judaica". "Uma tradição de rígido questionamento", completou ele.

Judea Pearl encerra seu prefácio lembrando que a história judaica recente traz à memória outra pessoa que enfrentou os horrores de uma era: Anne Frank. Para Judea, o impacto do diário de Anne Frank, na década de 1950, guarda um paralelo com a tragédia que se abateu sobre Daniel Pearl, já que as duas histórias estimularam debates sobre o anti-semitismo. "A diferença, no entanto, é que o diário de Anne Frank foi descoberto depois do Holocausto, enquanto a história de Danny veio a público em tempo de evitar sua repetição", comparou Judea. "Isso nos dá a esperança que algum dia, eu possa dizer ao meu neto: 'Você vê, Adam? O legado de seu pai nos ajudou a vencer essa batalha! A humanidade triunfou!'", concluiu Judea, em tom otimista e empurrado pela luta da Fundação Daniel Pearl, de promover o entendimento e o diálogo entre diferentes culturas.

O jornalista Jaime Spitzcovsky é editor do site www.primapagina.com.br. Foi editor internacional e correspondente em Moscou e em Pequim.