Na Holanda sob ocupação nazista, escondido num sótão por mais de dois anos, Emmanuel, um jovem judeu, criou as aventuras do detetive Dompie Stompie, uma graphic novel, romance gráfico em quadrinhos, para se comunicar com  sua futura esposa, Hetty, que estava num esconderijo a poucos quilômetros de distância.

Mais de 70 anos depois, Emmanuel Joels viu publicadas as aventuras do detetive feito de arame e, em abril deste ano de 2016, expostas no Museu Histórico Judaico de Amsterdã, uma instituição que anualmente recebe mais de 250 mil visitantes. Apenas Emanuel, hoje com 97 anos, auditor financeiro aposentado, dono de uma memória fotográfica, pôde ver sua criação ser exposta. Hetty infelizmente faleceu no ano passado.  Por pouco também teria essa alegria.

É bem provável que a mostra não tivesse chamado tamanha atenção da mídia e do público não fosse o romântico pano de fundo que levou à sua criação,  pois durante todo o tempo em que Emanuel e Hetty ficaram escondidos dos nazistas, as aventuras de  Dompie Stompie foram o único meio de comunicação entre o jovem par de namorados.

Os jovens judeus conseguiram escapar à deportação para Auschwitz por um triz e sobreviveram escondido ao Holocausto. Estavam entre os poucos judeus holandeses que tiveram “sorte”, pois 75% dos que viviam na Holanda acabaram sendo dizimados pelos nazistas e seus cúmplices, inclusive muitos dos familiares do casal.

Um policial holandês alertara Emanuel e Hetty   com algumas horas de antecedência de que as SS  iriam invadir e deportar todos os funcionários e pacientes do hospital psiquiátrico judaico de Apeldomn, cidade localizada a 90 quilômetros a leste de Amsterdã, onde Hetty trabalhava como enfermeira. O hospital era um dos poucos lugares onde os judeus ainda podiam trabalhar durante a ocupação nazista da Holanda.

Membros da Resistência esconderam os dois jovens  na casa de duas famílias de cristãos holandeses que  viviam a alguns quilômetros de distância e que, apesar dos poucos recursos, já abrigavam outros judeus.  Era praxe da Resistencia esconder membros de uma mesma família em separado, assim caso um dos esconderijos fosse descoberto, nem todos seriam presos – como aconteceu com a família de Anne Frank.

Precisa ser lembrado que era grande a coragem desses indivíduos que escondiam judeus, pois estavam colocando suas próprias vidas e a de seus familiares  em risco, já que a punição para esse “crime hediondo” era a morte. Os que acolheram Hetty foram além. Cuidaram da jovem que havia contraído tuberculose trabalhando no hospital, apesar do grande risco de contágio, e mesmo tendo poucos recursos financeiros conseguiram os medicamentos e os alimentos necessários para seu tratamento. 

Apesar de estarem a salvo e  em local relativamente próximo  um do outro, o casal não podia  se encontrar – seu local de esconderijo era separado por uma importante artéria de tráfego das tropas nazistas que eles não podiam se arriscar a atravessar. Emmanuel, ou E., como era chamado, então encontrou uma forma criativa e discreta de ficar em contato e apoiar-se mutuamente: criando as histórias em quadrinhos do Dompie Stompie. Ele queria distrair a noiva com desenhos que não traíssem nem o autor nem os leitores caso fossem, porventura, interceptados.

Cada romance gráfico era composto de cerca de 30 páginas de texto e desenhos coloridos, e não fazia menção à Guerra nem aos crimes cometidos pelos nazistas. Eram histórias das viagens que Dompie Stompie fazia para países imaginários onde era chamado para solucionar crimes.

Hetty recebia semanalmente um novo capítulo das aventuras.  A filha de sete anos do casal que abrigava E., Geeske Schurink, incumbia-se de levar as histórias  em quadrinhos para a jovem.  A menina nunca disse uma palavra sequer sobre os “visitantes”, que se encolhiam no sótão quando os Schurinks recebiam visitas – inclusive alguns parentes pro-nazistas. Ao falar sobre os dois anos e meio em que esteve escondido, Emanuel disse ser “inacreditável que nenhuma das quatro crianças que viviam na casa, mesmo as menores, jamais tivessem dito, a quem quer que fosse, uma só palavra do que ali acontecia“.

Após o término da Guerra,  Emanuel e Hetty se casaram e tiveram duas filhas, Jet e Marian.  O casal raramente falava às filhas sobre a Shoá e seus traumas. “Nossos pais só nos contavam coisas ‘positivas’ do Holocausto, os poucos pontos de luz daquele período obscuro, mas mesmo sendo crianças aquilo não nos convencia”, revela Jet. “Nós sabíamos que a maioria de nossos familiares morreram durante a Shoá e percebíamos a tensão na voz de nossos pais. Eles nos transmitiam suas ansiedades sem precisar mencioná-las”. 

Emanuel costumava contar às filhas desde a infância as aventuras de Dompie Stompie, durante as refeições em família. Há alguns anos, ao mudar seus pais para uma instituição para idosos, Jet e Marian encontraram os manuscritos das aventuras guardados em uma caixa de papelão, no fundo de um armário. Decidiram que algo precisava ser feito com os manuscritos. Quando foram finalmente publicadas, a primeiríssima cópia foi enviada a Geeske Schurink, que funcionara como pombo-correio entre Emmanuel e Hetty tantos anos atrás.

Emanuel, com hoje 97 anos, raramente fala de suas emoções. Em uma entrevista, ele revelou que optou por desenhar porque era o hobby preferido na casa dos Schurinks, onde estava escondido. Ele se recorda que afastado do mundo exterior e sem ter o que fazer, decidiu desenhar para passar o tempo. Sua primeira tentativa artística foi desenhar de memória uma tábua do jogo de Monopólio para as quatro crianças da família Schurink. Elas nunca tinham ouvido falar no jogo.

Durante a entrevista, E. afirmou que considera os desenhos de Dompie Stompie um tanto “bobos”, e conta que escolheu uma figura feita de um fio de arame para ser o protagonista de sua história em quadrinhos porque não sabia desenhar rostos.  Revela ainda que, ao contrário do que se tem especulado, ele jamais teve a intenção de fazer qualquer alusão à situação que viviam, criando a série apenas para transmitir seu amor a Hetty e como uma forma de cumprir a promessa feita de sempre manter vivo em suas vidas um ponto de luz, algo positivo, não importando as dificuldades que viessem a enfrentar. Mas, para a curadora da mostra,  a graphic novel é  algo mais de que uma história em quadrinhos entre um casal de namorados.  É “mais uma prova da bravura  dos judeus durante o Holocausto”.

E, para sua filha Jet - apesar das afirmações do pai - há algo mais na escolha de um personagem feito de arame. Ela acredita que “simboliza a simplicidade e a força” e, talvez,  “as cercas de arame farpado  que circundavam os guetos  e os campos de concentração”. Ela ainda acredita que “o pássaro que captura o detetive no terceiro e último volume da série lembra a águia imperial que aparece com força no regime nazista, e um bunker camuflado no qual o pássaro o deixa cair evoca os anos em que seus pais viveram escondidos“.   

“Trata-se de uma linda história de família, mas, também, de uma incrível força de vontade de meus pais e de toda a sua geração de não sucumbir à escuridão, mesmo quando resistir parecia sem significado”, concluiu Jet.