Se tivéssemos que escolher um epicentro da cultura judaica americana, apontaríamos para os palcos da Broadway. Não resta dúvida de que a criação e a evolução dos musicais estão intrinsecamente ligadas a centenas senão milhares de judeus talentosos.

Foi na Broadway onde talentos como Fanny Brice, Al Johnson, Eddie Cantor, Bert Lahr empolgaram as platéias por mais de meio século.Os musicais, aliados ao jazz e ao expressionismo abstrato, são das poucas manifestações artísticas exclusivamente americanas, nascidas em Nova York, cidade com um grande contingente populacional judaico.

De inspiração européia, os musicais se tornaram uma forma de ópera popular, com características próprias: uma energia contagiante com boa dose de atrevimento e ingenuidade e um otimismo inabalável. A Broadway preferia 'atores' que soubessem cantar a 'cantores' que apenas recitavam, pois suas histórias eram movidas pelos diálogos. Mesmo se a meta final era o sucesso comercial e não um possível legado artístico para a posteridade, esses shows produziram trabalhos de valor inesquecível. Havia um compromisso democrático com a popularização da cultura e da música.

Quanto aos talentosos compositores que criaram e desenvolveram o gênero - tendo a gratificante recompensa de ouvir toda a América cantar suas músicas - quase todos eram judeus nova-iorquinos, imigrantes ou filhos de imigrantes. Não se pode compreender o tremendo impacto dos judeus sobre as artes performáticas americanas sem lembrar que, entre os judeus que, no século XIX, deixaram a Europa à procura de uma vida melhor, estavam artistas de grande talento. Eles trouxeram para a América seus dons, sua especialização e preparo nas artes, e um elevado padrão de profissionalismo. Sem eles seria impossível imaginar a história do teatro musical, nos Estados Unidos. Haveria, de certo, teatro, música e comédia, mas a combinação destes para criar o musical foi sua marca registrada. O empresário judeu das artes performáticas se tornou o arquétipo do produtor teatral americano. Foram os Frohmans e Shuberts que transformaram o teatro numa próspera atividade comercial, e Florenz Ziegfeld, que o transformou num "espetáculo", na própria acepção da palavra: um show de música, cores, lindas canções, figurinos exuberantes e uma profusão de moças bonitas.

Por causa da barreira da língua, muitos escritores, diretores e atores permaneceram por algum tempo isolados no Teatro Iídiche. O gênero, que já se iniciara na Europa, encontrou o calor e a receptividade de um verdadeiro lar, em Nova York, sob a direção de dramaturgos, como Abraham Goldfaden, e atores, como Maurice Schwartz. Durante a primeira metade do século, o teatro iídiche americano não apenas foi uma importante fonte de cultura e entretenimento para quem falava o idioma, mas também uma considerável fonte de talento para a nascente indústria de entretenimento americana.

Uma rua chamada Broadway

A região que hoje é chamada de Broadway, localizada em Manhattan entre a rua 42 e a Times Square, era, no início do século passado, um lugar esquálido, freqüentado por boêmios e outros elementos de vida dúbia. Apenas a algumas quadras dali, no Lower East Side, conviviam imigrantes vindos de todas as partes do mundo, criando um caldeirão cultural no qual tradições diferentes se misturaram para dar lugar a algo único. Entre eles, havia centenas de milhares de judeus. Pode-se dizer que os musicais surgiram de uma mescla de diferentes tradições musicais e teatrais: a tradição irlandesa do vaudeville, as revistas dos trovadores negros que mesclavam canções e interlúdios cômicos, de certa forma semelhantes aos melodramas do teatro iídiche da Segunda Avenida. Em 1900 já havia 33 teatros em funcionamento, na Broadway, e muitos outros surgiriam, na próxima década, como resultado da demanda crescente por parte dos espectadores.

Durante a década de 1920 e 1930, os atores da Broadway viviam em hotéis próximos aos teatros onde representavam. O café Lindy's, famoso por seu cheesecake - a torta de queijo que simboliza a cidade quase tanto como a 'Big Apple'- tornou-se o principal ponto de encontro dos representantes do "vaudeville". Os mais famosos - entre eles, Sophie Tucker, Eddie Cantor, Al Jolson e Fanny Brice - eram judeus e marcaram o lugar com seu linguajar típico, repleto da ironia e irreverência judaica e de expressões em iídiche. Seguindo a tradição interativa de seu teatro, no qual os espectadores conversavam com os atores durante o show, esperando pela resposta para desenvolverem o diálogo, estes artistas cultivavam uma relação de intimidade com o público que nenhum outro grupo étnico conseguiu imitar, pelo simples fato de não disporem dos elementos básicos para tanto - aquele humor sarcástico, que ria de suas próprias mazelas e infortúnios - o "sal judaico", como é chamado.

A marcante influência judaica nos espetáculos musicais da Broadway tem sido tema muito analisado por estudiosos americanos; entre eles, Stephen Whitfield, no livro In Search of American Jewish Culture. Em outubro de 2004 foi ao ar o documentário "Broadway: o musical americano", que analisou este gênero teatral desde os primeiros espetáculos, destinados ao público nova-iorquino, por volta de 1904, até as modernas mega-produções destinadas ao gosto internacional. O documentário foi produzido por Laurence Maslon, professor de arte na Universidade de Nova York, e Michael Kantor. Na obra, Maslon reitera a idéia de que "sem os judeus não haveria musical americano. Sua influência é semelhante a dos músicos negros, no jazz". Mas, apesar de saber que muitos judeus trabalhavam na Broadway, os produtores se surpreenderam ao constatar, nos arquivos, o número quase descomunal de artistas, escritores e compositores judeus.

A Broadway os atraía porque o musical, inicialmente considerado um gênero mais popular de entretenimento, não era visto como refinado nem muito "respeitável" pela seletiva elite americana. Assim, o acesso ao mesmo não era prerrogativa exclusiva e guardada a sete chaves dos WASP - os "brancos, protestantes, de origem anglo-saxônica" - como o restante das manifestações culturais. Esta abertura favoreceu também a participação dos judeus em Hollywood, cujos estúdios foram fundados por indivíduos com o mesmo perfil dos que operavam as cadeias de teatros e produziam as peças teatrais e os musicais.

E seu público, à época, era também em grande parte constituído por judeus, que ocupavam pelo menos a metade dos assentos. Não era raro verem-se espetáculos inteiros vendidos a grupos beneficentes ou para confraternizações judaicas.

Nascem os musicais da Broadway

Encabeçando a lista dos que deram seu talento para fazer dos shows musicais da Broadway o sucesso mundial que são, está Florenz Ziegfeld. Gênio na arte do marketing artístico, Ziegfeld repaginou complemente os shows de variedades que caracterizavam o entretenimento, na época. Idealizou um espetáculo que seguisse a linha do Follies Bergères de Paris, uma bela mescla de apelo visual, profusão de cores, piadas e 'gags' pontuais e, sobretudo, lindas mulheres em trajes maravilhosos e brilhantes. Assim, nascia, em 1907, as Ziegfeld Follies. Seus shows permaneceram em cartaz até 1931. Até hoje, o criativo produtor é considerado uma das figuras mais glamurosas da Broadway e suas Follies, legendárias.

Fanny Brice foi uma das grandes comediantes. O ponto determinante de sua carreira foi a magistral interpretação, com sotaque iídiche, em Yiddle on Your Fiddle, Play That Rag Time, de Irving Berlin (em tradução livre do jogo de palavras, em inglês e iídiche, "Judeuzinho, toque em seu violino a onda do momento, o Ragtime"). Depois dessa performance, em 1910, foi contratada para trabalhar no Ziegfeld Follies, onde ficou até 1930. Fanny Brice foi considerada uma "exceção" nas contratações de Ziegfeld, conhecido por sua preferência por moças altas e vistosas para atuar na sua linha de frente. Fanny era uma artista eclética; cantava, com humor ou emoção, e tinha excepcional maestria da expressão verbal e dramática. Seu jeito engraçado e charmoso marcou época nos Follies. Durante a temporada de 1921, apresentou-se cantando My Ma, sucesso que passa a ser sua assinatura musical. Teve a carreira retratada por Hollywood, no filme Funny Girl, com Barbara Streisand no papel-título.

Mas a maior contribuição para o show-bussiness veio provavelmente de compositores e letristas, os mestres dos librettos, que, com suas obras, deram corpo e alma ao teatro musical americano. Mesmo se entre 1920 e 1960 eram poucos os personagens explicitamente judaicos, nos palcos, os judeus da Broadway foram os principais responsáveis por traduzir grande variedade de tradições musicais em formato popular, assimilando, amalgamando e moldando os diferentes aspectos da cultura americana.

Há várias teorias que tentam explicar por que os musicais da Broadway foram quase todos escritos por judeus, entre os quais, Jerome Kern, George e Ira Gershwin, Lorenz Hart, Leonard Bernstein, Stephen Sondheim, Harold Prince, Richard Rodgers e Oscar Hammerstein, só para citar alguns. Com exceção de Ethel Merman e Cole Porter - que, aliás, todos erroneamente acreditavam fossem judeus - todos os demais o eram, efetivamente.

Sheldon Harnick, que colaborou com Jerry Bock em Fiddler on the Roof ('O Violinista no Telhado'), afirma que vários músicos judeus, assim como Berlin, foram moldados na longa tradição judaica do estudo para a chazanut, o canto litúrgico. Composta por melodias repletas de emoção e espiritualidade, a liturgia judaica dirige seus louvores e exaltações a D'us com belos sons pungentes, que apelam para o coração e alma judaica e ficam impregnados na memória coletiva de quem cresceu acompanhando os serviços religiosos. Era esse o tipo de emoção que os compositores judeus transmitiam em suas músicas. Na adaptação para um musical da obra literária de Donn Byrne,"Marco Pólo", perguntaram a Jerome Kern, considerado um dos mais famosos compositores da Broadway, que tipo de música iria compor. E ele respondeu: "Certamente, uma bela melodia judaica".

Cole Porter, que não era judeu, teria perguntado, certa vez, a George Gershwin qual era o segredo do sucesso na Broadway. Consta que a resposta foi "componha músicas judaicas". Imigrante judeu russo, Gershwin é um dos maiores e mais versáteis compositores de todos os tempos, verdadeiro gênio em traduzir para a Broadway a tradição musical clássica; e vice-versa. Ele produziu a maioria das suas obras em parceria com o irmão mais velho, o compositor lírico Ira Gershwin. Em Rapsódia em Blue, sua famosa peça de jazz sinfônico, Gershwin faz uma síntese dos elementos da música clássica européia com música pop, jazz e blues. Para compor seu mais audacioso projeto, a ópera Porgy and Bess, ambientada no sul do EUA, na qual o compositor põe em cena a vida cotidiana de uma comunidade negra, década de 1930, Gershwin passou muito tempo entre os músicos negros, pelos cafés do Harlem, e foi mesmo à Carolina do Sul para aprender, in loco, os ritmos da cultura afro-americana. Estreando em 1935 na Broadway, tornou-se a maior ópera americana de todos os tempos. São também dos irmãos Gershwin as canções I Got Rhythm, Embraceable You, The Man I Love and Someone to Watch Over Me, famosas no mundo todo até os nossos dias.

Irving Berlin é outro grande nome judaico no panteão dos grandes compositores americanos, considerado um dos símbolos da música popular americana e responsável pela introdução do jazz e do ragtime ao grande público. O pai de Berlin era chazan de sinagoga e treinou seu filho no canto litúrgico judaico. Seu primeiro grande sucesso foi Alexander's Ragtime Band, em 1911. Autor e compositor, criou algumas das canções mais representativas dos EUA, como "God Bless América", verdadeiro hino nacional alternativo do país; There's No Business Like Show Business, sobre a indústria do entretenimento; e White Christmas, clássico natalino premiado com o Oscar.

Não podemos esquecer o fundamental papel que a dança teve e continua a ter nos shows da Broadway. Também nessa área os coreógrafos e bailarinos judeus deram grande contribuição. Entre eles, Sammy Davis JR (convertido ao judaísmo já em idade madura), a dançarina e coreógrafa Pearl Lang, os coreógrafos Jerome Robbins - coreógrafo e diretor, entre outros, de "Violinista no Telhado" - e Michael Kidd, um dos mais revolucionários da Broadway, ganhador de vários prêmios, entre os quais o Academy Award, em 1977, pelo conjunto de sua obra.

Apesar da forte influência judaica, foi em meados da década de 1960 que a identidade judaica começa a aparecer, de forma explícita, nos palcos da Broadway. Em 1955, fez enorme sucesso na Broadway a encenação de um roteiro adaptado do livro "Anne Frank: o diário de uma jovem". Mas, a figura de Anne e o diário haviam passado por um processo de dissociação de sua origem judaica, desencadeado tão logo a obra foi publicada, e que transformou Anne em "uma jovem como qualquer outra". No roteiro, escrito por Albert Hackett e Frances Goodrich, nenhum deles judeu, o texto ficou mais universal e foram ignoradas as passagens em que Anne descreve a comemoração das festas judaicas e a manutenção dos costumes típicos, mesmo nas condições precárias do esconderijo de sua família.

Quando em setembro de 1964 estreou "O Violinista no Telhado", emocionante musical baseado em famoso conto de Scholem Aleichem, muitos acreditavam que por ser "muito judaico" não iria além das matinées vespertinas. E foi um dos maiores sucessos que mais tempo permaneceram em cartaz, de toda a história da Broadway.

Ao constatar que os temas judaicos caíam no gosto do público, aumentaram as produções sobre as mais diferentes questões ligadas ao judaísmo: o bíblico Noé; Cabaré, sobre Berlim na época da ascensão do nazismo; e Ragtime, sobre a América entre as duas guerras mundiais.

Bibliografia

Whitfield, Stephen Whitfield, In Search of American Jewish Culture, 1972.

Kantor, Michael e Malson Lawrence, Broadway: the American Musical, 2004

The Shengold Jewish Encyclopedia, Shengold Books.

"A Jewish Street Called Broadway", artigo de Samantha M.. Shapiro, publicado na Hadassah Magazine, outubro de 2004