Pintura, litografia, pintura mural e fotografia. Estas são algumas das áreas nas quais se destacou ao longo de sua vida o judeu americano Benjamin Zwi Shahn. Artista plástico no conceito mais amplo do termo, tornou-se um dos mais importantes e respeitados nomes da arte norte-americana do século XX.

Ben Shahn é principalmente conhecido como um dos representantes do realismo social1. Mas, numa análise mais profunda, sua arte e sua vida parecem desafiar esta limitada categorização. Em épocas e circunstâncias diferentes, fossem estas políticas, pessoais ou profissionais, sua obra revelava as diferentes facetas do artista, algumas vezes até de forma simultânea: imigrante judeu do leste europeu e artista americano de sucesso; político radical na década de 1930 e liberal no pós-guerra; artista plástico e fotógrafo documentarista; litógrafo comercial e protagonista unanimemente aclamado da principal retrospectiva do Museu de Arte Moderna de Nova York, em 1947, ao ponto de ser o escolhido, em 1954, para representar os Estados Unidos na Bienal de Veneza. Atualmente, suas obras fazem parte dos acervos permanentes de renomadas coleções, como o Museu de Arte Contemporânea de Chicago, o Museu do Vaticano e o Jewish Museum de Nova York, entre outras.

Artista comprometido com seus ideais, Ben Shahn, escolheu falar com o mundo através de suas obras. Constantemente à procura de um estilo próprio, às vezes na contramão das tendências artísticas da época, sua obra reflete o contexto socio-político vigente bem como sua constante preocupação com a injustiça, a liberdade de expressão e a essência do homem. Sempre presente como pano de fundo, estava a sua identidade judaica, arraigada em seu profundo "yidishkait" - os valores e as tradições culturais típicas dos judeus da Europa Oriental. Esta identidade permeia grande parte de seu trabalho. Isto se torna ainda mais visível na última década de sua vida, através de nítidas imagens bíblicas e judaicas.

Foi longa a trajetória iniciada no cheder1 que freqüentou no pequeno povoado lituano de Vilkomir até a vida aculturada e secular que levou no Brooklyn, em Nova York; de lá até seu sucesso como artista plástico, que culminaria com o despertar do sentimento judaico que trazia como herança. Sua arte é, sem dúvida, um exemplo fascinante dos paradigmas do mundo e da vida sob a óptica de um artista judeu imigrante.

Memórias de infância

Ben Shahn, como passou a ser conhecido mundialmente, nasceu em Kovno, Lituânia, em 12 de setembro de 1898, em uma família de judeus ortodoxos. Foi o quinto filho de Joshua Hessel e Gittel Shahn. Seu pai era um artesão que adorava trabalhar com as mãos, da mesma forma como faria o filho, ao longo de sua vida. De seu pai, um grande defensor da liberdade que conseguia equilibrar judaísmo e socialismo, o jovem herdou o idealismo que nortearia sua vida. Foi, também, com o pai que lhe ensinou a desenhar, ainda pequeno, que aprendeu a arte de contar historias. A mãe, Gittel, mulher inteligente e de personalidade forte, também gostava de contar histórias aos filhos. Ben Shahn sempre repetia, com orgulho, que ele, também, era "um contador de histórias". Costumava dizer: "Muitos fatos são mentira. Todas as histórias são verdade". E, em cada obra que criou ao longo de sua vida, foram muitas as que contou. Na verdade, pode-se dizer que ele foi "a somatório de todas as suas histórias".

As memórias que guardava da infância, apesar de não muito nítidas, eram marcadas por discriminação religiosa e perseguição política. Kovno era um ativo centro de cultura judaica, mas a vida dos judeus da cidade, como no resto do Leste Europeu, estava longe de ser tranqüila. Eram alvo constante de violência e o anti-semitismo, parte de seu cotidiano. Daquela época, Ben Shan trazia, boas lembranças de seu pai, carregando-o nos ombros em manifestações socialistas, assim como outras, amargas, como daquele dia de junho de 1902 em que Hessel foi preso, acusado de ser inimigo do governo czarista e deportado para o exílio, na Sibéria.

Sozinha e com três filhos para criar, a mãe decidiu retornar a à Vilkomir, onde ainda viviam seus pais e sogros. A mudança marcou o rapaz profundamente. O jovem passou a conviver com o avô paterno, Wolf-Leyb, homem respeitado por sua sabedoria e bondade e que passou a dedicar muito tempo e carinho ao neto, para quem se tornou não apenas pai adotivo, mas verdadeiro herói e modelo.

Foi em Vilkomir que o jovem começou a desenhar, expressando-se através do traço de maneira espontânea e simples. Como o papel era escasso, fez grande parte dos desenhos nas páginas em branco e na contracapa dos livros. Seu primeiro desenho foi um retrato de seu tio, Lieber, cavalgando. Apesar de nunca tê-lo visto pessoalmente, sabia pelos comentários da família que o tio era membro da cavalaria russa e que estava muito distante.

Assim como os outros jovens judeus, passou a freqüentar o cheder. Brilhante, foi colocado em uma classe de alunos mais velhos e, durante nove horas por dia, estudava o alfabeto hebraico, a Torá e o Talmud. Foi nesse período que aprendeu uma lição importante, que o acompanharia pelo resto da vida: não aceitar e lutar vigorosamente contra a injustiça, sempre e em qualquer circunstância. Há historiadores de arte que acreditam que sua dedicação à questão social foi conseqüência natural de sua educação talmúdica.

O impacto da emigração

Ben Shahn emigrou para os Estados Unidos em 1906, com a mãe e os irmãos, para se reunir com o pai que depois do exílio conseguira fugir das autoridades czaristas. Reunida, a família recomeçou a vida em Nova York, no bairro de Brooklyn. Para o pequeno Ben, essa mudança representou uma ruptura traumática com o passado. O novo mundo era estranho e desconhecido e, principalmente, distante do avô querido, Wolf-Leyb, a quem nunca mais veria. Além do mais, após ter vivido no campo e em contato constante com a natureza, morar em um apartamento, numa cidade como Nova York, era um tanto quanto sufocante. Sobre aquela época, Ben contava: "Eu costumava sair de casa e olhar para a lua, pois, assim, ao pronunciar a Bênção da Lua, poderia me consolar com a idéia de que meu avô olhava para aquela mesma lua". As reflexões nostálgicas sobre sua infância e juventude estão presentes em muitos de seus quadros do pós-guerra. Tendo imigrado ainda criança, Shahn passou por um processo gradual de aculturação, distanciando-se cada vez mais de sua herança religiosa e assumindo uma identidade judaica secular, identificada com as causas trabalhistas e as reformas sociais predominantes na década de 1930.

Carreira em ascensão

Aos catorze anos, por insistência de sua mãe, tornou-se aprendiz de litógrafo, embora preferisse continuar os estudos regulares. Assim, para prosseguir com sua instrução, organizou um programa intensivo, autodidata, valendo-se do acervo da biblioteca pública municipal. Tempos depois, matriculou-se em um curso de desenho, freqüentando, posteriormente, o supletivo em uma escola noturna. Como ele próprio admitia, além de ter sido seu sustento e ter pago seus estudos universitários, a litografia influenciou sua maneira de ver a arte, especialmente na fase mais madura de sua carreira, pois a linha cinzelada tão típica nas litogravuras era o que distinguia seu estilo.

Em 1922, Shahn casou-se com Tillie Tzipora Goldstein, com quem teve dois filhos. Entre 1922 e 1929 fez duas viagens ao exterior, realizando o antigo desejo de estudar arte e aperfeiçoar sua técnica em Paris. Lutando para resistir à influência do impressionismo francês e encontrar seu próprio caminho artístico percebeu que, o estilo narrativo de suas criações estava na contramão da arte moderna. "Uma das primeiras coisas que tive que aceitar foi o fato de que, apesar de amar contar histórias, não era esta a função das artes. Foi quando percebi ser esta uma de minhas grandes limitações", dizia. Retornou aos Estados Unidos em 1929, após a quebra da Bolsa de Nova York. Em meio à "Grande Depressão", abriu um estúdio junto com o fotógrafo Walker Evans. A fotografia passaria a ter um papel central em sua arte. Na década de 1930, o artista criou uma série de trabalhos que respondiam às condições sociais, econômicas e políticas decorrentes da profunda crise econômica vigente. Seu estilo, chamado de realismo social, era narrativo, figurativo; suas imagens, socialmente explicitas.

Em seus trabalhos dessa época, estão presentes temas judaicos e letras do alfabeto hebraico. Um de seus melhores e mais originais trabalhos, são as ilustrações para a "Hagadá de Pessach", de1931. A epopéia do Êxodo do Egito era vista pelo artista como uma metáfora universal sobre liberdade e justiça social. Sua primeira série de cunho político que data desse mesmo ano, também trata de um tema judaico. Pintou guaches retratando os protagonistas do "Caso Dreyfuss", o oficial judeu francês injustamente acusado de traição a seu país.

Ainda que já tivesse o reconhecimento por seu talento há mais de uma década, Shahn ganhou maior projeção em 1932, com a série de 23 quadros em guache e têmpera sobre o julgamento e a condenação à morte de dois imigrantes italianos anarquistas, que viviam nos Estados Unidos, acusados de comunistas - Nicola Sacco e Bartolomeu Vanzetti. Com um certo sarcasmo, o artista expressou sua solidariedade aos acusados e revolta diante do episódio. A série "A Paixão de Sacco e Vanzetti", sucesso de critica e público, internacionalmente consagrada como uma das obras mais importantes de sua carreira, é um marco do estilo social realista. No mesmo ano, o Museu Whitney de Arte Americana incluiu uma de suas pinturas em sua primeira Bienal e foi também convidado a participar de uma exposição de pintores americanos, no Museu de Arte Moderna de Nova York.

Em 1932 e 1933 produziu outra série de cunho político, desta vez sobre o famoso julgamento e execução do líder operário Tom Mooney. Seu interesse por temas políticos o acompanhou ao longo de toda a sua vida profissional. Seu ativismo de esquerda fez com que fosse convidado por Bernarda Bryson, com quem mais tarde se casaria pela segunda vez, para colaborar no jornal do Sindicato dos Artistas, fundado em 1933 para representar a classe artística junto aos projetos governamentais.

Shahn também foi convidado para trabalhar com o pintor Diego Rivera, um dos principais expoentes do muralismo mexicano e do realismo social, no controvertido mural, para o Rockfeller Center, que por razões políticas, acabaria sendo destruído antes de seu término. Com Riviera aprenderia as técnicas da pintura mural.

Grande admirador do presidente norte-americano Franklin D. Roosevelt, Ben Shahn envolveu-se em uma série de projetos artísticos patrocinados pelo governo federal, no âmbito do New Deal, o programa de intervenção estatal visando a recuperação econômica. Os objetivos do governo eram simples: criar trabalho para os artistas americanos de forma a manter a arte americana viva e acessível à população.

Entre os inúmeros e variados projetos que participou, estão uma série de murais atualmente tidos como dos melhores da época. O mais famoso - executado entre 1936-38 - é o mural da comunidade judaica de Jersey Homesteads, atualmente chamada de Roosevelt. Construída em 1936, durante a Grande Depressão, dentro do programa governamental de reassentamento, esta comunidade destinava-se principalmente a abrigar operários judeus da indústria de vestuário, de Nova York. O próprio Shahn e a esposa se mudaram para lá, em 1939.

No mural, de 50 metros, Shahn quis retratar a história da comunidade local, composta em sua grande maioria por imigrantes judeus do leste europeu, como ele, suas vicissitudes e preocupações políticas e sociais. Além de enfrentar dificuldades econômicas, como de resto do povo americano, os judeus desse país viam com preocupação o rápido crescimento do nazismo, na Europa, e do anti-semitismo nos Estados Unidos.

Os painéis, que devem ser vistos da esquerda para a direita, retratam as origens e perseguições, na Europa Oriental, bem como a vida sob o regime czarista; a chegada na Ilha de Ellis e a entrada em território norte-americano; o ingresso no mercado de trabalho, como operários, e sua organização em sindicatos, com o fim de obter melhores condições de trabalho, e, por fim, a criação da comunidade de Jersey. Albert Einstein e o artista Raphael Soye, partidários da criação da comunidade, também aparecem no mural, ao lado de muitos dos habitantes locais. Há, também, referências à Alemanha nazista e aos horrores da perseguição aos judeus. Shahn apregoava, na época, que o que acontecia na Alemanha era uma prova de que os judeus não deviam assimilar-se nem sacrificar sua herança cultural.

A Guerra Mundial e a tradição judaica

O desapontamento com as ideologias partidárias políticas da década de 1930, os horrores das perseguições e a limitação dos meios de expressão do realismo social podem ter provocado o inicio de uma nova fase na obra de Ben Shahn. O artista usa, cada vez mais, linguagem e imagens mitológicas e bíblicas para expressar sua preocupação com temas pessoais e universais. Ele mesmo reconheceu essa mudança pouco antes daSegunda Guerra Mundial.

Definia esse novo estilo introspectivo como "realismo pessoal" em contraponto a seu realismo social da década de 1930. Eram o sofrimento e as angústias individuais, mais do que da sociedade como um todo, o que ele queria retratar.

Profundamente afetado guerra, ele se muda para Washington onde passa a trabalhar para o Gabinete de Informação da Guerra e para o Congresso das Organizações Industriais, criando pôsteres e uma série de litografias de contra o fascismo. Entre 1944 e 1946, chocado com a brutalidade da guerra, retrata suas vitimas como "Fome", "Querubins e Crianças" e "1943 A. D.". Em outras telas relata a destruição da Europa: "Europa", "Paisagem italiana" e "A Escada Vermelha". Todas essas obras remetiam, ainda que de forma sutil, ao extermínio dos judeus da Europa.

O horror face à terrível realidade revelada após a guerra e a tragédia do Holocausto levaram o artista a explorar cada vez mais suas experiências subjetivas, inclusive as lembranças de sua infância, revelando suas emoções mediante narrativa alegórica. Sua arte evolui para um estilo próprio, mais abstrato, que, apesar de incluir as distorções do surrealismo mantém seu tom narrativo, ainda que enigmático, atribuindo múltiplos significados às alegorias que utiliza.

Apesar de não ser religioso, Shahn sempre foi um artista intrinsecamente judeu. Mas, após o Holocausto a ligação com sua herança ficou ainda mais forte, e os anos do pós-guerra são marcados por um ressurgimento da herança judaica em suas obras. Imagens claramente extraídas dos rituais e história judaicos aparecem em quadros alegóricos no final dos anos 40 e nos anos 50. São freqüentes as alusões ao Holocausto, por se identificar com as vítimas e sentir que tinha a obrigação de representar um mundo que fora destruído. Shahn acreditava que tinha uma responsabilidade em relação a sua memória. Mas, às vezes de forma simultânea, suas pinturas abordavam a regeneração, que vinha envolta em alegria, como se fosse uma resposta a destruição e uma celebração pela criação do Estado de Israel, em 1948.

Após quase uma década, o artista volta a usar letras hebraicas, cuidadosamente elaboradas, bem como símbolos e textos judaicos que transmitem ensinamentos. São exemplo disto as palavras que aparecem em "Maimônides", quadro de 1954, ou as mensagens em hebraico sobre os direitos dos homens e no "Ram's Horn and Menorah", 1958. Fez, também, murais para entidades judaicas e sinagogas em Connecticut e no Tennessee, além de dois mosaicos feitos, originalmente, para o navio israelense Shalom, e que hoje estão no Museu Estadual de Nova Jersey.

Sempre atento aos acontecimentos de sua época e preocupado com as tensões e a ameaça do apocalipse nuclear criados pela Guerra Fria, faz uma série de telas sobre o tema. Em "Era da Ansiedade", de 1953, o tema central é a ameaça nuclear e a execução de Ethel e Julius Rosenberg pela suposta venda de segredos atômicos aos soviéticos. Décadas depois, entre 1960 e 1962, cria a série denominada "Lucky Dragon", sobre o episódio que envolveu um navio japonês que vagava em área onde se realizavam testes nucleares.

Shahn foi um artista que, em sua obra, aliou suas próprias experiências aos eventos históricos da época, transformando-os em marcante posicionamento sobre a justiça social, as causas humanitárias e a redenção espiritual. Fez de seu talento ferramenta para manifestar sua visão e seus sentimentos em relação ao mundo em que vivia e sua compaixão pela condição humana. Morreu em 14 de março de 1969.

Em 1976, o Museu Judaico de Nova York organizou uma retrospectiva de suas obras, intitulada "Homem Comum, Visão Mítica: As Pinturas de Shahn".

1. Realismo social - movimento artístico presente em diversos paises a partir da década de 1920, caracterizado por um figurativismo expressionista, de forte caráter narrativo e temática centrada na política e no social.

1 Cheder, literalmente "cômodo", em hebraico. Como era chamado, na Europa Oriental, o local onde os meninos recebiam sua instrução sobre religião e judaísmo.

Bibliografia:

Susan Chevlowe, Common Man, Mythic Vision: The Paintings of Ben Shahn - The Jewish Museum, New York, Princeton University Press