A sinagoga de Dura-Europos, que ficou enterrada nas areias da Síria Oriental por 17 séculos, escreveu sozinha um importante capítulo na história da arquitetura e decoração das sinagogas.

Sua descoberta causou um frisson entre arqueólogos e historiadores, pelas pinturas que ornam seu interior, retratando cenas bíblicas que revelam uma arte de cuja existência não se tinha conhecimento. Era o maior conjunto de afrescos da Antiguidade inspirados na Torá, no Midrash, nos Livros dos Profetas e em outros textos judaicos.

O impacto foi profundo tanto sobre o que se sabia, até então, em relação à arte judaica e, de modo geral sobre os estudos da arte nos últimos séculos da Antiguidade, como sobre a iconografia bíblica e os vínculos entre a arte judaica e a cristã. Tais afrescos estão, hoje, expostos no Museu Nacional, em Damasco.
 
O destino de Dura-Europos, antiga cidade fundada no terceiro século antes da Era Comum (a.E.C), às margens do rio Eufrates, e de sua sinagoga, é, de certa forma, comparável ao de Pompéia, pois suas riquezas arquitetônicas e artísticas foram preservadas pelas toneladas de areia e entulhos sob as quais a cidade ficou soterrada desde sua destruição, em meados do século 3 desta Era, até sua descoberta acidental, em 1920.

O sítio foi encontrado pelo exército britânico, que fazia preparativos táticos para enfrentar a chamada Revolta árabe, que se havia espalhado também na região do Eufrates. Ao cavar trincheiras perto da cidade de Salhiy, uma unidade encontrou um muro de um antigo templo, onde se podia ver um afresco muito bem conservado.

Historiadores e pesquisadores sabiam da existência de Dura-Europos, pois a cidade é mencionada nos textos do geógrafo Isidore de Charax, que viveu no século 1 da Era Comum. Apenas não se conhecia a sua localização.  

O local começou a ser escavado por arqueólogos em 1922, mas os trabalhos tiveram que ser interrompidos dois anos mais tarde devido à falta de segurança da região. Em 1928, arqueólogos da Universidade de Yale, em associação com a Academie des Inscriptions et Belles Lettres, voltaram a escavar o sítio. Quando, em 1937, Yale decidiu interromper os trabalhos por escassez de fundos, cerca de 30% da antiga cidade haviam sido revelados. Entre as riquezas arquitetônicas e artísticas descobertas e os inúmeros templos dedicados às mais diversas divindades, havia uma sinagoga, encontrada em 1932, em notável estado de preservação. Junto à sinagoga, foram encontrados, também, um local de orações usado provavelmente por soldados romanos, conhecido como domo Mithareum, e uma pequena capela cristã.

A sinagoga, com sua construção e decoração tão elaboradas, não encontra paralelo em nenhum outro templo encontrado em Dura-Europos. O arqueólogo norte-americano Clarck Hopkins assim descreveu a descoberta “(...) como uma página saída de um conto das Mil e uma Noites. Esfregou-se a lâmpada de Aladim e, repentinamente, das areias secas e escuras do deserto, pinturas emergiram, não apenas uma, um painel ou um muro, mas um edifício inteiro, com cenas após cenas desenhadas, todas extraídas da Bíblia, de uma forma até então jamais sequer imaginada”.

A cidade
 
Situada na atual Síria, próxima à fronteira com o Iraque, Dura-Europos foi fundada no ano 300 a.E.C., às margens do rio Eufrates, como entreposto militar, por Seleuco Nicator, na época general de Alexandre o Grande. Seleuco, que após a morte de Alexandre ficou com a parte asiática do império, foi o fundador do Império Selêucida.
O nome “Dura-Europos”, com um hífen unindo os dois nomes, é uma combinação ortográfica moderna. Na Antiguidade, a cidade era chamada pelos povos da região de “Dura”, que vem da palavra “duru”, em aramaico, “fortaleza” – isto por causa de sua estratégica localização. Os gregos, porém, chamavam-na de “Europos”, o nome da cidade macedônica onde nascera Seleuco I Nicator.

Localizada na rota que ligava Antióquia com Selêucia do Tigre – primeira capital do Império Selêucida, Dura-Europos fazia parte da rede de cidades fortificadas e centros de comércio estabelecidos por Seleuco I Nicator. Sua localização estratégica lhe permitia controlar o comércio fluvial da região. Em meados do século 2 a.E.C., os seulêcidas deram início ao projeto de urbanização que transforma Dura-Europos de entreposto militar em uma cidade grega.

Em 114 a.E.C., a cidade é ocupada pelo Império Parto (247 a.E.C.-224 E.C.), uma das principais potências político-culturais iranianas da antiga Pérsia. Apesar de ficar sob dominio parto, culturalmente continuava sendo uma cidade predominantemente grega. Foi durante essa ocupação, que durou até 165 E.C., que Dura-Europos viveu seu período de maior prosperidade.

Nos anos 160 E.C., durante as guerras entre romanos e partos, o avanço ocidental das forças partas ameaçou a fronteira romana ao longo do Eufrates. O exército do imperador romano Lucius Verus seguiu em direção à Síria para forçar o recuo do inimigo. Uma das batalhas decisivas aconteceu na frente de Dura e a cidade é sediada, caindo em mãos romanas em 165 E.C..

Dura-Europos se tornou um dos pontos fortes da defesa das fronteiras do Império Romano diante dos ataques dos partos. Suas defesas foram reforçadas e uma poderosa força militar romana estacionou na cidade. A maior parte deste contingente era oriunda de Palmira, cidade que exerceu forte influência sobre Dura. O domínio romano durou 60 anos e não foi benéfico para a cidade. A insegurança que prevalecia nessa região fronteiriça resultou numa diminuição da atividade comercial e a cidade virou, basicamente, um centro militar romano.

Nas primeiras décadas do século 3 da Era Comum, a mudança de poder na Pérsia teria sérias consequências para Dura-Europos. Em 224, os sassânidas, dinastia com grandes ambições territoriais, derruba os partos e muda a configuração geopolítica da região. O Império Sassânida, que vai durar até 651, seria o último grande Império Persa antes da conquista muçulmana. Querendo restabelecer o antigo Império Persa, eles passam a ameaçar as fronteiras romanas na Síria e na Ásia Menor, e o fazem através de Dura. Alegavam que a ocupação romana da cidade era ilegal, uma vez que o imperador Augusto havia cedido Dura aos partos.

Em resposta à ameaça que esse império representou para a cidade entre os anos 253 e 257, os romanos a fortificam e a suas muralhas. Construíram, dentro da cidade, um baluarte de defesa, que incluía as edificações próximas à muralha ocidental. Para proteger as pinturas nas construções religiosas, inclusive as da sinagoga, preencheram-nas com areia. No ano de 253, os sassânidas atacam a cidade. Três anos depois, apesar das maciças fortificações, conseguem penetrar – ainda há marcos que atestam a ferocidade da luta. Derrotados os romanos, os sassânidas deportam os habitantes de Dura e, a cidade destruída, desaparece do mapa.

Quando a cidade foi sitiada, os soldados romanos construíram uma escarpa de terra junto à muralha, para defender o lado ocidental da cidade. Quando esta escarpa desmoronou, levou consigo as construções ao longo da muralha ocidental, inclusive a igreja e a sinagoga, enterrando-as. A sinagoga foi totalmente coberta por pedregulhos e entulhos, e seus tesouros artísticos ficaram, durante séculos, a salvo das intempéries.

A comunidade judaica

Numericamente pequena durante o período selêucida, a população de Dura aumentou sob o domínio dos partos, chegando a ter 20 mil habitantes sob o domínio romano. Os moradores de Dura, oriundos das mais diferentes etnias e religiões – gregos, semitas, partos, romanos –, conviviam pacificamente. Essa diversidade étnico-religiosa é atestada pela quantidade de templos dedicados aos mais diferentes deuses, que foram encontrados durante as escavações, pois cada grupo tinha seu próprio lugar de culto.

Acredita-se que os judeus se estabeleceram em Dura durante o domínio parto. Não há, no entanto, achados arqueológicos que confirmem sua presença em épocas anteriores ao conjunto de construções das quais era parte a sinagoga. A construção dessas casas data do final do século 1, início do 2 da E.C. e corresponde ao período de maior prosperidade vivido pela cidade.

Vivendo em um meio totalmente pagão, os judeus eram uma minoria étnica de pouca representatividade. Apesar de a cidade estar localizada a apenas 400 quilômetros ao norte de Nehardea, importante centro do judaísmo babilônico, e ter estreitas ligações com Palmira, onde havia uma comunidade judaica, os historiadores acreditam que os judeus de Dura-Europos viviam relativamente isolados.

As modestas dimensões e a localização da primeira sinagoga, próxima ao muro ocidental da cidade, entre as torres 18 e 19, são forte indício de que a comunidade era inicialmente pequena. No início do século 3 da E.C. já aumentara e prosperara. O maior indicativo desse crescimento foi a expansão da antiga sinagoga. Foram compradas casas adjacentes à mesma, que, em seguida, foram incorporadas através de passagens entre elas. O conjunto que se criou incluía varias salas, um pátio cercado por pórticos e um “salão da congregação” para as orações. Algumas das salas eram usadas, provavelmente, para alojar viajantes e, outras, para os funcionários da sinagoga. Uma inscrição em uma lajota do teto, encontrada entre as ruínas, revela o nome de quem iniciou o projeto de ampliação da sinagoga – Samuel ben Yeda’ya, “o Ancião”, e o nome de seus dois assistentes – Abraham, o tesoureiro, e Samuel bar Sapahara. Uma inscrição em aramaico traz gravada a data de 244-245 desta Era, marcando o término das modificações na arquitetura da nova sinagoga, e não de sua decoração.

A primeira sinagoga

A primeira sinagoga era uma modesta residência particular, escolhida pelos judeus de Dura para atender suas necessidades comunitárias e religiosas. Apenas pequenas modificações foram feitas, para adaptar a residência adequadamente. A mais significativa foi a construção, no muro ocidental do salão onde passariam a realizar as orações, de um nicho para os Sifrei Torá, uma edícula, como era chamado na arquitetura romana. Na arquitetura sinagogal, Dura fornece o primeiro exemplo de um local específico, fixo, onde eram colocados os Sifrei Torá, que acabaria evoluindo para o Aron Hakodesh. Nas sinagogas da Galileia, esse arranjo somente apareceria no século 3.

O salão para orações era do tipo “sala ampla”, com dois portões no lado oriental e a edícula com os rolos da Torá no lado ocidental. As mulheres ficavam em outra sala adjacente.

Os arqueólogos conseguiram reconstruir parcialmente a decoração da primeira sinagoga graças aos restos encontrados durante as escavações. As paredes e o teto do salão de orações eram pintados. Nas paredes, não havia desenhos de símbolos judaicos ou representações de seres vivos. A faixa central era de mármore incrustado, acima e abaixo da qual havia uma pintura, imitando mármore, nas cores ocre, amarelo e verde sobre fundo amarelo. O teto era totalmente coberto, imitando lajotas, decorado em uma rica variedade de cores. Na sala reservada às mulheres, as paredes eram pintadas com motivos florais, folhas e frutos.

A segunda sinagoga e seus afrescos

Diferentemente da primeira sinagoga, onde só foi possível fazer uma reconstrução aproximada, os muros da sala de orações da segunda sinagoga foram protegidos pela areia ao longo de 17 séculos. Isso permitiu a restauração do muro ocidental, em sua quase totalidade, e, parcialmente, a dos outros muros.

A decoração da segunda sinagoga foi um projeto ambicioso em termos artísticos e foi executada em duas etapas. O projeto original incluía apenas a decoração do teto e do local onde se guardavam os rolos da Torá. Ao término da execução da segunda etapa do projeto, a sala de orações – que media 13,65 X 7,68 metros – todas as paredes e a área destinada à Torá, haviam sido completamente cobertas por cenas figurativas de episódios bíblicos da Torá e dos Livros dos Profetas, com alusões aos ensinamentos contidos no Midrash e no Targum.

Os afrescos narrativos eram organizados em faixas, uma em cima da outra. O estilo das pinturas foi uma combinação das tradições greco-orientais. Os artistas empregaram a técnica al secco e uma gama de cores bastante limitada, tendo predominado as cores terrosas –vermelho-brique, rosa, amarelo claro, os marrons, verdes e usaram a fuligem para fazer as vezes de preto.

Não há precedente na arte da Antiguidade de uma narrativa – na forma de pinturas – tão complexa como a que foi criada na Sinagoga de Dura. Ao longo dos anos, inúmeras foram as tentativas de interpretar as pinturas nas paredes, e decifrar sua mensagem. Para a descrição e análise das cenas neste artigo, seguimos a linha adotada no livro “Arte Judaica”, de Gabrielle Sed-Rajna, baseada no trabalho de Carl H. Kraeling. Historiador, arqueólogo e teólogo luterano norte-americano, Kraeling publicou sua análise dos afresco em seu livro, The Synagogue (Excavations at Dura-Europos, Final Report), inicialmente publicado em 1956 pela Yale University Press.

Painel após painel, os afrescos retrataram importantes momentos na história de nosso povo, sem, no entanto, seguir uma ordem cronológica. O objetivo ia além de um exercício artístico, havia um propósito teológico: mostrar a excepcional Providência Divina em relação ao Povo Judeu, que se manifestou em várias vicissitudes de nossa história e, ao mesmo tempo, servir como uma reafirmação de que, apesar de todas as provações enfrentadas por Seu povo, a Aliança selada entre D’us e os Filhos de Israel e Sua promessa de Redenção eram eternas e imutáveis.

Como era de se esperar um dos principais destaques da narrativa é Moshé, nosso maior profeta. Os artistas retrataram, entre outros, seu resgate do Nilo, a revelação da Sarça Ardente, a saída dos Filhos de Israel do Egito, o milagre da abertura do Mar Vermelho e o recebimento da Torá diretamente de D’us. Nos painéis sobre a saída do Povo de Israel do Egito, a Mão de D’us simboliza Sua milagrosa intervenção.

A Arca da Aliança, o símbolo da Presença Divina entre Seu Povo, é o tema de mais uma série de painéis – desde a consagração do Tabernáculo no deserto, sua captura pelos filisteus, até sua transferência para o Templo de Salomão. O Rei David, do qual vai descender o Massiach, é tema de outra série de afrescos. O artista retratou, entre outros, o jovem David no meio de seus irmãos sendo ungido pelo profeta Shmuel, e numa outra cena o Rei David tocando a harpa. Estão também retratados momentos importantes da vida do profeta Eliyahu; a visão de Ezequiel sobre a ressureição dos mortos e a volta das Dez tribos perdidas para Eretz Israel.

Há também painéis sobre a história de Purim: de Esther, Mordechai e da intervenção Divina que salvou os judeus de Shushan. Este episódio destinou-se a acender a esperança de que a Proteção Divina iria manifestar-se mais uma vez aos judeus de Dura e os iria resgatar das ameaças de outro governante persa, o rei sassânida.

A narrativa era interrompida, no meio do muro ocidental – onde ficava o local côncavo, o nicho, onde eram colocados os Sifrei Torá – por uma composição artística central. As pinturas nas paredes calcadas em episódios do passado tinham como objetivo dar sustentação a essa composição, que era o tema central da obra.

No lado esquerdo aparecem o Templo de Jerusalém pintado em ouro, uma menorá monumental, também pintada em ouro, um lulav e um etrog. Esses três símbolos que aparecem em conjunto com o Templo fazem referência à Festa do Tabernáculo, a celebração mais formal realizada no Templo. Esta associação sugere que o Templo que brilha acima do nicho é o da Era Messiânica. No lado direito está retratada uma cena da Akedá, o sacrifício de Yitzhak. Nosso patriarca Avraham domina a cena. Sobre o altar, a Mão de D’us emerge em meio às nuvens, símbolo da intervenção Divina a favor de Seu Povo. As pinturas representam a ligação entre o passado – representado pela Akedá, e o futuro, pelo Templo de Jerusalém, que será reconstruído com a chegada do Massiach, quando se realizarão as promessas que D’us fez a Seu Povo.

Em 1999, por iniciativa da França, Dura-Europos foi declarada Patrimônio da Humanidade.

Bibliografia:
Sed-Rajna, Gabrielle, Jewish Art, Ed. Harry N. Abrams, 2005
Jarrasse, Dominique, Synagogues,
Ed. New Line Books, 2205