No ano de 1840, Damasco foi palco da maior cause celèbre do século 19: os judeus foram falsamente acusados de assassinato ritual. Uma calúnia medieval que parecia ter desaparecido do imaginário anti-semita ocidental, volta à cena, de modo brusco e aterrador.

O Caso Damasco teve início em fevereiro de 1840, com o desaparecimento de um frade capuchinho e seu criado. O fato não teria atraído a atenção mundial não fosse o interesse das nações européias no enfraquecido Império Otomano. Na época, a Síria, uma de suas províncias há mais de 300 anos, era governada por Muhammad Ali Pacha, do Egito, que a conquistara dos turcos em 1832. O sultão otomano, que queria reintegrá-la ao seu império, era apoiado pela Aliança Quádrupla - Inglaterra, Prússia, Áustria e Rússia, enquanto Muhammad Ali contava com o apoio da França, que, através dele, pretendia fortalecer sua influência na região.

Diferente de outros casos famosos, até o final da década de 1990 o Caso Damasco não havia sido objeto de cuidadosa pesquisa acadêmica. Entre outras razões, simplesmente porque a França manteve fechados os arquivos sobre o assunto até 1980. O primeiro trabalho, "The Damascus Affair: Ritual Murder, Politics, and the Jews in 1840", publicado em 1998, é de autoria de Jonathan Frankel, professor de História Judaica da Universidade Hebraica de Jerusalém. Respeitado historiador e autor de importantes obras, durante 11 anos Frankel pesquisou arquivos e, utilizando fontes originais, produziu um trabalho minucioso de 500 páginas sobre o Caso Damasco.

O duplo assassinato

No dia 5 de fevereiro, o frade capuchinho Tommaso de Calangianus e seu criado, Ibrahim Amara, não voltaram ao convento, após a ronda diária entre a população da cidade. No dia seguinte, os capuchinhos alertaram o cônsul francês, conde Benoit Ratti-Menton, que, de acordo com o sistema das capitulares, tinha jurisdição legal sobre todos os católicos da Síria. Os religiosos acreditavam que o frade havia sido morto por judeus que queriam usar seu sangue na fabricação de matzot para Pessach.

O papel de Ratti-Menton foi fundamental para o desenrolar do caso. O conde não era nenhum exemplo de integridade, inteligência ou competência e, apesar de não ser um anti-semita "ativo", assim que julgou culpados os judeus, os tornou alvo de uma crueldade impar. Em inusitada atitude, o cônsul francês desiste de suas prerrogativas e entrega o caso a Sherif-Pacha, governador egípcio de Damasco. Não foi difícil convencer o governador da suposta culpa dos judeus e de que as investigações deveriam ser realizadas no Bairro Judaico.

Nenhum outro indício foi investigado, nem o fato de que, alguns dias antes, testemunhas ouviram um muçulmano ameaçar o frade, "Badri Tooma", dizendo: "Este cão cristão vai morrer pela minha mão". Nem foi levada adiante a denúncia feita, duas semanas mais tarde, por um jovem judeu de que vira o frade na loja de um muçulmano pouco antes de seu desaparecimento. Pelo contrário, enfurecido ao ouvir a denúncia, Sherif-Pacha golpeou o jovem mortalmente. Não era de interesse do governador que algum muçulmano fosse incriminado.

Um primeiro grupo de judeus é preso e interrogado. O barbeiro Salomon Negrin é escolhido para prover as "evidências" do crime. Cruelmente torturado, o infeliz resistiu à primeira sessão, mas acabou "confessando" que 7 judeus, entre os homens mais proeminentes da cidade, haviam matado o capuchinho e usado seu sangue em rituais. Os implicados são presos, cruelmente torturados e espancados. Vários dentre eles tiveram os olhos arrancados e os órgãos genitais esmagados. Determinado a encontrar o corpo do frade, Sherif-Pacha vasculha o Bairro Judaico com seus soldados, sem nada encontrar. As autoridades chegam ao ponto de manter como reféns 63 crianças judias, para "incentivar" as mães a revelar o paradeiro do corpo. Em carta endereçada ao cônsul de Beirute, 15 dias após os acontecimentos, Ratti-Menton afirma que não tinha dúvida sobre a culpa dos judeus, mas que as autoridades não conseguiam encontrar provas.

Neste ínterim, espalha-se entre a população muçulmana a calúnia de que os judeus assassinavam cristãos, em seus rituais. Ratti-Menton decide "esclarecer" a questão, pois o mito do libelo de sangue, que surgira na Europa cristã no século 11, era até então praticamente desconhecido entre a população dos países islâmicos. O cônsul distribui um texto, em francês e árabe, sobre "o uso de sangue cristão por judeus". Com os ânimos exaltados, um grupo formado pelo populacho cristão e muçulmano, sai às ruas para saquear propriedades judias. A sinagoga de Jobar foi pilhada e seus valiosos Sefarim, destruídos.

No final de fevereiro são encontrados restos humanos que as autoridades e a Igreja declaram pertencer ao frade Tommaso. No dia 2 de março é realizado um funeral. A seguinte inscrição é colocada no túmulo: "Aqui repousam os restos do frade Tommaso de Calangianus, missionário capuchinho, morto pelos judeus em 5 de fevereiro de 1840".

Mais judeus são presos. No total, 13 estavam nas mãos das autoridades: o rabino-chefe de Damasco, Jacob Antebi; os rabinos Mikhan Yéhoudah e Hazarya Halfon; e alguns dos mais influentes judeus da cidade: Raphael Farhi e seus irmãos; Nathan e Aharon Levy-Stambouli; Jacob Aboulafia; Joseph Laniado; David, Isaac e Aharon Harari; e Isaac Piccioto. Sendo filho do cônsul-honorário da Áustria em Alepo, este último era cidadão austríaco. Este fato desencadearia uma total reviravolta no caso.

Ao saber da prisão, Caspar Merlatto, cônsul-geral da Áustria, pede para ver o dossiê sobre o inquérito. Convencido da inocência dos judeus e sem se deixar intimidar pelas pressões, Merlatto torna pública sua posição e começa a agir. Despacha ao cônsul austríaco de Alexandria, Anton Laurin, um relatório sobre o affaire, e este, por sua vez, o envia ao príncipe Metternich. Principal responsável pela política externa austríaca, Metternich já fora informado por Salomon de Rothschild sobre as prisões e as terríveis torturas, ressaltando o fato de que o vice-cônsul francês em Damasco, Jean-Baptiste Beaudin, as presenciara.

Merlatto alerta, também, o cônsul honorário da Áustria em Paris, barão James de Rothschild. Após apelar, em vão, ao governo francês, em favor dos injustiçados, James de Rothschild divulga para a mídia européia as informações sobre o Caso Damasco.

Reação na Europa

Nos meios judaicos, as notícias sobre o Caso e o fato da acusação de assassinato ritual ter sido tão facilmente aceita provocam indignação e consternação.Até então, os judeus ocidentais, recém-emancipados, acreditavam ser aquela calúnia um mal do passado, que não mais encontraria eco em uma Europa que pregava a razão como o mais importante instrumento para se chegar ao conhecimento.

Até o relatório de Merlatto ser divulgado, a notícia que circulava na Europa era que os judeus presos em Damasco eram culpados e que haviam confessado o crime. O apoio dos cônsules francês e britânico de Damasco à acusação pesou muito frente à opinião pública európeia. Adolphe Thiers, primeiro-ministro francês, cético a princípio sobre os relatórios que recebia de seu consulado em Damasco, acabou acreditando na culpa dos judeus. Ao se reunir com seu amigo, James de Rothschild, disse-lhe que "os judeus do Oriente Médio eram atrasados e fanáticos, assim como o eram na Idade Média, e que qualquer cristão, à época, sabia que cometiam assassinato ritual".

O cônsul britânico em Damasco também informara Londres que acreditava na culpa dos presos e que, em sua opinião, eram louváveis os esforços conjuntos do cônsul francês e das autoridades muçulmanas para levar adiante o caso. O The London Times, que não tinha posição anti-judaica, também chegou a publicar que não havia dúvidas sobre a culpa dos judeus. Somente Lorde Palmerston, Ministro das Relações Exteriores britânicas, desde o início do Caso Damasco acreditava que a Coroa inglesa deveria oferecer proteção aos judeus do Oriente Médio, entre outros como forma de sedimentar a influência britânica na região.

Os dois arqui-reacionários da Europa, Metternich, da Áustria, e o czar Nicolas I, cuja hostilidade contra os judeus era conhecida, haviam expressado dúvida sobre as acusações que envolviam os judeus de Damasco e sobre a validade, em geral, das acusações de assassinato ritual.

Quando o relatório de Merlatto vem a público, há uma mudança na opinião geral. Ao ler sobre as confissões obtidas sob tortura e a falta de evidências físicas que comprovassem a culpa dos judeus, a atuação francesa passa a ser questionada. Os jornais se interessam cada vez mais pelo caso, a essa altura com todos os elementos de um best-seller: duplo assassinato, supostos rituais religiosos, réus proeminentes, interesses variados e intrigas internacionais.

Movimentação entre os judeus

Decididos a defender seus irmãos de Damasco, os judeus se mobilizam. A mídia judaica bombardeia o público com editoriais e informações; demonstrações de repúdio são realizadas nas grandes cidades européias, assim como em Nova York e na Filadélfia. Era a primeira vez que os judeus dos Estados Unidos se uniam em favor de uma causa judaica em outras terras. Nos meios diplomáticos, circula um dossiê completo sobre o Caso. As chancelarias de várias nações e judeus proeminentes pressionam seus governos para intervir a favor dos presos. O papa não se manifesta, mas Estados Unidos, Prússia, Áustria e Inglaterra enviam protestos diplomáticos de repúdio ao governo egípcio.

A França, porém, continua irredutível em sua posição, não querendo desacreditar seu cônsul e, muito menos, se indispor com o Egito, peça-chave na política francesa no Oriente Médio. Adolphe Crémieux, líder judeu francês, tenta interceder junto ao rei Louis Philippe e ao primeiro-ministro, AdolpheThiers, mas é recebido com frieza. Em seu livro, Frankel afirma que Thiers poderia ter posto um ponto final no assunto, ainda em abril. Não o fez porque permitiu que os interesses nacionais franceses prevalecessem sobre o que sabia, ou suspeitava, ser a verdade - que os judeus haviam confessado sob tortura crimes dos quais eram inocentes.

Na Inglaterra, o barão Nathaniel de Rothschild, amigo íntimo da Rainha Vitória, sir Moses Montefiore, os irmãos Salomon e os Goldschmidt obtêm o apoio da Coroa britânica. Na Áustria, os Rothschild e os Arnstein conseguem o apoio de Metternich. Além das razões humanitárias, os dois países viam no affaire uma oportunidade para solapar o prestígio francês junto ao governo egípcio.

Sir Moses Montefiore e Adolphe Crémieux organizam uma delegação de judeus ocidentais ao Egito, para um encontro pessoal com o Pachá egípcio. Antes de iniciar a missão, Montefiore é recebido pela Rainha Vitória e por Lorde Palmerston. Este último envia uma ordem aos cônsules britânicos na Síria e Egito para que ajudem a delegação no que fosse preciso. Enquanto isso, em Alexandria, o cônsul austríaco entrega a Muhammad Ali uma petição assinada por oito dos nove cônsules de países cristãos - à exceção da França - pedindo a revisão do processo e a realização de uma investigação imparcial. Mas, não houve manifestação por parte do governo. Era voz corrente, no meio diplomático, que enquanto a França sustentasse a posição de seu cônsul, não haveria mudança por parte do governo egípcio.

A delegação liderada por Montefiore e Crémieux chega a Alexandria, sendo recebida pelo Pachá no dia 4 de agosto. Pedem um julgamento em tribunal internacional para os judeus acusados. O panorama mundial estava a favor dos judeus. No horizonte, se assomava a guerra entre o Egito e o Império Otomano, ao passo que a influência da Franca na região estava desgastada. A libertação dos presos vai-se dar graças à confluência dos interesses britânicos, austríacos e judaicos e à habilidade dos líderes judeus, da época, em aproveitar ao máximo a oportunidade que se lhes apresentava.

Finalmente, após longas negociações, em 28 de agosto Muhammad Ali concorda em libertar todos os presos. No entanto, quando chega a Damasco a ordem de soltura, quatro judeus já haviam morrido, sete estavam mutilados e somente dois saem do cativeiro ilesos. Nunca houve nenhuma retratação em relação aos judeus acusados, nem foram declarados inocentes pelas autoridades locais.

Nos meses seguintes, Muhammad Ali é derrotado pelos otomanos e perde seu poder. Sherif-Pacha é levado prisioneiro pelos otomanos para o Cairo, onde foi executado. Somente o conde Ratti-Menton voltou à França sem sequer ter levado uma advertência.

Mas, para Cremieux e Montefiore, o affaire não terminara. Temerosos de que se repetissem as acusações de assassinato ritual, seguem para Constantinopla. Lá, conseguem que o sultão Abdul Megid publique um édito declarando que a acusação contra judeus de usar sangue cristão em seus rituais não passava de uma mentira. Ademais, o sultão se comprometia a proteger os judeus do Império Otomano contra calúnias vis.

Uma mentira que não quer morrer

Lamentavelmente, até hoje, as acusações do Caso Damasco são consideradas verdadeiras, no mundo árabe, e são usadas como "provas" das intenções judaicas. Em seu nefasto livro, The Damascus Blood Libel (1840) as Told by Syria's Minister of Defense, Mustafa Tlass repete as calúnias de 1840 como fatos comprovados. E, numa entrevista levada ao ar no dia 30 de janeiro de 2007 pela Tele Liban, o "poeta" Marwan Chamoun repetiu as mentiras engendradas durante o Caso Damasco como verdades.

O Caso é considerado um importante marco na história judaica moderna. Além de ser considerado crucial na transição do anti-judaísmo clássico para o anti-semitismo moderno, foi uma ducha fria nas esperanças de igualdade para os judeus da Europa. Isto fez com que se unissem e se organizassem. Foi a primeira vez que líderes judeus de vários países atuaram em conjunto e foi também a primeira vez que os judeus do mundo todo foram às ruas em manifestações públicas. O escândalo do libelo de sangue de Damasco contribuiu para a fundação, em 1860, da Alliance Israélite Universelle.