Léon Blum, Ilan Halimi, Le Pen e as várias facetas do anti-semitismo na França de hoje.

Como judeu brasileiro estudando em Paris, não foram poucas as vezes em que fui surpreendido com uma mesma pergunta: "Como é o anti-semitismo na França?". Diante da questão, não sabia exatamente por onde começar, até porque não era claro para mim mesmo do que se tratava o famigerado anti-semitismo francês moderno. Talvez o adjetivo "moderno" já seja um início, porque ao menos indica que não se trata de uma repetição de padrões de "anti-semitismos" tão abundantes na História da França. Mas só depois de passar vários meses imerso na sociedade francesa, pude começar a entender um pouco mais este fenômeno social, por que ele é tão particular à França e tão diferente das imagens que dele nos chegam no Brasil.

Foi num momento especial que tudo começou a fazer um pouco mais de sentido na minha cabeça. O frio castigava algumas dezenas de alunos da minha universidade que - dispostos, em silêncio, num jardim marcado pelo inverno europeu em volta de um microfone e de uma caixa de som - rendiam homenagem aos mortos em Auschwitz. O evento havia sido organizado pela União dos Estudantes Judeus da França (UEJF), na ocasião do aniversário da libertação do campo, e contava com a participação de representantes de quase todos os partidos do espectro político francês, esquerda e direita. Um a um, convidados ao microfone no jardim da prestigiosa universidade de ciência política, cada representante recitava algum texto importante para si mesmo e que dissesse algo sobre a ocasião. O membro do Partido Socialista (PS), um garoto tímido de vinte e poucos anos, resolveu ler um texto de Léon Blum - judeu socialista que entrou para política após o Caso Dreyfus e por três vezes fora primeiro-ministro. Uma garota que representava o partido de centro-direita (UMP) citou um poema escrito por um parente que passara por Dachau; a representante do Partido Verde (PV), Primo Levi. À medida que cada um se aproximava do microfone, eu entendia pouco a pouco como as elites políticas, os grandes partidos, o establishment político francês são comprometidos com a preservação da memória do Holocausto. Como para eles Vichy é uma grande mancha na História nacional e também como para eles qualquer tipo de manifestação anti-judaica é inaceitável. Por coincidência ou não, naquela noite assisti no telejornal uma homenagem do presidente Chirac aos que lutaram contra o fascismo e aos que salvaram judeus - cerimônia que se deu no Panthéon, monumento destinado aos héros de la Patrie. Mas, se de um lado, me saltava aos olhos este consenso quanto ao repúdio do anti-semitismo e a forma como referências francesas faziam parte da conscientização de intelectuais, políticos, estudantes e demais ilustrados, sentia, de outro lado, que o anti-semitismo é assustadoramente presente na França.

No final da cerimônia na universidade, perguntei a duas alunas judias sobre o campo de Drancy, um campo de passagem de judeus na 2ª Guerra conhecido como a "antecâmara de Auschwitz" que, para mim, tem um peso especial, já que o avô da minha namorada por lá passou durante a guerra. Solícitas, elas me encorajaram a ir visitá-lo, dizendo que ficava a alguns minutos de trem e que havia um memorial no que restava do campo - então decidi conhecê-lo. Drancy se localiza ao norte de Paris, numa zona simples que hoje é densamente habitada por imigrantes norte-africanos. Depois de 40 minutos de trem, vi-me perdido numa estação que não conhecia e, então, decidi pedir informações. Mas, estranhamente, ali ninguém jamais ouvira falar do campo de Drancy. Motoristas de ônibus, velhos imigrantes que conversavam na calçada, vendedores da banca de jornal, todos me respondiam que lá era a comuna de Drancy, mas que desconheciam algum campo, monumento ou qualquer coisa do tipo. Foi só depois de entrar num guichê de trem que, com a ajuda de um mapa, um vendedor me instruiu a pegar um ônibus e descer num tal lugar. Visitei o campo (hoje um conjunto habitacional), tirei um punhado de fotos do vagão que havia sido usado na deportação e do forte monumento que lá construíram - devidamente alinhado a uma grande bandeira francesa.

Mas voltei com a impressão de que aquele lugar histórico, repleto de placas de bronze cravadas com um "jamais esqueceremos" - colocadas pela mesma União dos Estudantes Judeus que organizou o ato na minha universidade e pelo governo francês - é simplesmente desconhecido pelos que lá vivem. Este contraponto entre aqueles que entendem o significado daquilo tudo e aqueles que, apesar de viverem sobre as ruínas de Drancy, não têm a menor noção do que significa, me pareceu uma excelente metáfora; uma excelente explicação do anti-semitismo francês moderno. Uma parte da sociedade francesa, ou a parte "mais importante", é profundamente tocada pelos valores que re-fundaram a Europa e a consciência européia depois de 1945, inclusive o significado da Shoá e do anti-semitismo. Outra parte, não. A exclusão no país se apresenta num sentido amplo e não é exagero dizer que uma parcela da sociedade é excluída - ou se exclui - da própria consciência francesa.

Na volta de Drancy, no trem, comecei a relembrar de "coisas anti-semitas" que me chamaram a atenção desde que cheguei por aqui. A primeira que me veio à cabeça foi a imagem dos adesivos colados pelas estreitas ruas do Marais, o tradicional bairro judaico de Paris, com o nome e a imagem de Ilan Halimi. Os adesivos haviam sido colocados por membros da comunidade judaica, revoltados com o brutal assassinato do jovem judeu. Ilan Halimi fora seqüestrado por um grupo de imigrantes da Costa do Marfim, que se auto-intitulava les barbares (os bárbaros), liderados por Youssuf Fofana. Porque Ilan era judeu "e judeus têm dinheiro", segundo Fofana, o jovem foi mantido em cativeiro por aproximadamente 12 dias, sendo sistematicamente torturado - é provável que vizinhos tenham assistido as cenas de tortura sem chamar a polícia - e, finalmente, abandonado nos arredores de Paris, com 80% do corpo queimado de ácido. Ilan não resistiu e morreu antes de chegar ao hospital. Em seguida, 21 pessoas foram presas e Fofana, que conseguira fugir para a Costa do Marfim, foi extraditado a pedido da justiça francesa. Depois de um ano do crime, o nome de Ilan Halimi é recorrente nos jornais e ativamente relembrado pelas organizações judaicas da França, um nome que virou uma espécie de sinônimo de um novo anti-semitismo.

Lembrei-me também das notícias sobre o aumento assustador de atos de violência dos mais diversos tipos contra alvos judaicos, estimulado pela recente guerra entre Israel e o Hezbollah. Pichações, agressões contra instituições judaicas, ofensas contra judeus e outras ações do tipo conheceram uma alta vertiginosa no mês de julho de 2006. Nessa mesma época eu morava num bairro um pouco mais afastado, a leste de Paris, e uma noite, voltando para casa a pé, ao passar por um grupo de jovens escutei uma provocação racista a meu respeito. Algo um tanto impensável no Brasil, ser insultado por ser judeu, na rua, mas que aconteceu há poucos quarteirões da minha antiga casa. Porém, novamente, isso seria absolutamente inconcebível no centro da "Cidade Luz", jamais imaginaria alguém traçar um comentário desse tipo na parte central de Paris, assim como jamais imaginaria sentir uma forma explícita de anti-semitismo nos grandes meios franceses. O anti-semitismo aqui é marginal, mas nem por isso pequeno e, muito menos, sem importância.

Ainda na retrospectiva dos "anti-semitismos" que aqui presenciei de alguma forma, depois de Ilan Halimi e dos demais atos relacionados ao universo imigratório que praticamente não se integrou à sociedade francesa, foi impossível não lembrar da extrema-direita. Personificada no candidato à presidência que, nas últimas eleições, chegou "por acidente" ao segundo turno, Jean-Marie Le Pen, a extrema-direita francesa hoje é uma constelação de grupelhos assustadores formada por historiadores revisionistas, ex-membros da extrema-esquerda, nacionalistas anti-europeus, xenófobos, homófobos, anti-islâmicos, anti-semitas e outros mais. O partido que representa essa fatia do eleitorado francês, o Front National (FN), forma uma coligação no Parlamento Europeu com a neta de Benito Mussolini, Alessandra Mussolini, com romenos hostis às minorias ciganas e belgas separatistas (extremistas flamands) - a "Identidade, Tradição e Soberania". Esta assustadora aliança européia é liderada pelo euro-deputado francês Bruno Gollnisch, também uma das principais figuras do Front National, condenado pela justiça francesa por "contestar a existência de crimes contra a Humanidade" ao questionar o número de mortos nos campos de concentração nazistas e a existência de câmaras de gás.

Meu maior contato com a extrema-direita se deu quando um escritor francês aliado a Le Pen foi expulso de uma feira de livros, em minha universidade, pelo próprio reitor, auxiliado pela polícia. O reitor justificou a ação dizendo que a presença do escritor e de suas idéias não eram bem-vindas no estabelecimento, o que acabou por reforçar ainda mais minha impressão de que a extrema-direita é consensualmente repudiada pelo establishment político francês. Todos os grandes partidos nacionais são unânimes em relação à condenação do Front National, situação evidenciada nas últimas eleições presidenciais, quando Chirac obteve uma vitória esmagadora, no segundo turno, contra a extrema-direita. Mas, novamente, a marginalização não representa insignificância.

Provavelmente a grande semelhança entre os "dois anti-semitismos" que aqui presenciei - um proveniente de uma pequena parcela da imigração recente e outro da extrema-direita francesa - esteja no fato de os dois se localizarem às margens da sociedade. Se durante vários momentos da História da França o anti-semitismo era institucionalizado e disseminado nos principais meios sociais, hoje é um equívoco tentar entendê-lo dessa forma. Mas, mesmo assim, é presente, evidente e não dá sinais de enfraquecimento. Outra característica notável é a forma como diferentes canais se misturam dentro desses anti-semitismos: um ódio a Israel e a velha imagem de um grande complô judaico que atua nos bastidores para oprimir e maquinar, a negação do Holocausto e a recriação da História, a negação de tudo que representa algo vulgarmente denominado "sistema" e sua associação ao "judeu". Os canais se misturaram e hoje os "anti-semitismos franceses" são altamente complexos e sem contornos precisos.

No caminho de volta da ex-antecâmara de Auschwitz, comecei a entender que provavelmente Drancy continuará a ser uma enorme referência dentro da consciência francesa, construída pouco a pouco há quase seis décadas. Resta saber quem fará parte desta consciência e quais serão seus limites.