O nazismo morreu? E o fascismo? São doenças que vão e voltam, como certas pragas que merecem a nossa vigilância permanente.

Se o indivíduo tem uma formação nazista - e isso é quase de berço - como se pode supor que ele seja bonzinho, apesar de nazista? Ainda recentemente, tivemos esse tipo de discussão com certas lideranças. O governo austríaco mereceu a mais ampla repulsa das nações democráticas do planeta. Não se pode ter contemplação com essa gente, que busca reviver, com novas roupagens, a ideologia que custou a morte de 20 milhões de pessoas inocentes, das quais seis milhões de judeus.

O nazismo morreu? E o fascismo? São doenças que vão e voltam, como certas pragas que pedem a nossa vigilância permanente. No mundo que comemora a descoberta do mapa genético dos seres humanos para curar doenças antes insuperáveis, como se pode conceber a existência de amantes do pensamento racista, preconceituoso e discriminatório, que marca hoje os neonazistas em todas as latitudes?

Não subsiste a idéia confortável, mas falsa, de que isso é coisa de Europa. Lá nasceu e prosperou a idéia que teve em Hitler o seu maior nome, mas antes mesmo da explosão da comunicação universal, que é mais recente, os seus lamentáveis princípios alcançaram outros continentes, chegando mesmo ao Brasil, onde se assinala a presença de skinheads caboclos, capazes de cometer toda espécie de violência contra minorias, como judeus, negros, ciganos e homossexuais, como se a esses fosse vedada a possibilidade de viver. A cada momento, sinagogas são profanadas e livros como o famigerado "Protocolos dos sábios de Sião" são editados, para despertar a nossa vigilância. Na semana passada, depois de assistir ao lançamento do segundo romance de Arnaldo Bloch, "Talk Show", passamos defronte à recém inaugurada sinagoga do Beit Lubavitch, no Leblon, e vimos com pesar um dos seus muros completamente grafitado. Isso tem cabimento?

O fascismo faz uma dupla natural com o nazismo. A derrota na II Guerra Mundial, com a liquidação do Duce, não foi lição suficiente para a sua eliminação e ele aparece, hoje, com diversas facetas igualmente perversas.

Como judeus brasileiros, todos esses elementos mexem com a nossa sensibilidade, a que se deve agregar outra escola de violência e terror que é o fundamentalismo islâmico, aparentemente em fase de progressiva expansão. O Irã e o Iraque, como temos visto pelos veículos de comunicação de massa, sem contar outros países de menor expressão, valorizam a idéia de que se deve resistir à modernização das sociedades, para implantar sistemas de governo ditatoriais e fechados. Nada de acordos de paz, nada de ampliação das oportunidades de acesso feminino ao trabalho regular ou até mesmo à educação, para que se mantenham os privilégios de famílias e homens que comandam a política e os interesses nessas nações atrasadas. A quem essa conduta serve? Governos de pai para filho, como se tornou comum, são democráticos?

Site nazista

Não temos direito ao sossego. Sempre costumo dizer que é difícil ser judeu, em qualquer circunstância. Difícil e honroso, é claro. Outro dia, minha sogra, Paulina Dain Buchmann, foi alertada por sua amiga, Bertha Bronstein: "Sabe que no computador do meu filho apareceu uma lista de 200 judeus brasileiros que devem ser discriminados?"

São pessoas que, felizmente ainda vivas, têm presente na memória o que representou o Holocausto. Viveram essa época negra da história, perderam parentes, sofreram muito. Sempre sobra, no seu espírito, a insegurança, de alguma forma, de que esses dias terríveis possam voltar. E agora aparece, na indescritível Sociedade da Informação, um grupo de neonazistas brasileiros, possivelmente inspirados por movimentos de fora, para apontar à execração pessoas que são ou supostamente poderiam ser judeus brasileiros.

O site, como disse Fritz Utzeri, pode ser encarado como "uma lista de Schindler ao contrário". Coloca em dúvida a cidadania brasileira dos elementos citados, muitos dos quais prestam serviços inestimáveis ao País.

Eis o endereço do site, com vistas às autoridades que dispõem de leis anti-racistas para aplicar nesses bandidos: http://www.front14.org/nsww/1s.html. Não seria o caso de ir até as últimas conseqüências na condenação dessa gente? Não é uma nova roupagem, agora eletrônica, de um ódio secular e injustificável?

Somos irmãos

O avanço dos estudos genéticos, com a elucidação do genoma humano, leva à crença de que, por exemplo, judeus e árabes são irmãos (e não mais somente primos, como se acreditou durante tanto tempo). Acreditando no mesmo D'us único e todo-poderoso, tiveram momentos de grande entendimento, como nos mil anos que conviveram na Espanha. Por que, hoje, também esse sentimento não pode prevalecer, para o bem dos povos respectivos?

O entendimento com o cristia-nismo hoje é uma realidade, devida em grande parcela à compreensão desse grande humanista que é o Papa João Paulo II. Quando ele afirmou, há alguns anos, que "devemos prestar mais atenção no que dizem os nossos irmãos mais velhos, os judeus", fincou raízes fortíssimas na valorização da proclamada civilização judaico-cristã, colocando de lado elementos que aparentemente justificavam o anti-semitismo, como o alegado deicídio atribuído aos judeus. Foi com esse novo espírito de entendimento que a Editora Vozes, católica, encomendou-me o "Livro da Sabedoria Judaica", que hoje alcançou diversas edições, inclusive no mundo hispânico, a partir do México. É por esse caminho que se pode e se deve alargar o entendimento.

Praticar o bem

Se se deve praticar eficazmente o bem, como queria o filósofo Kant, a primeira tarefa é fazer da lei moral o grande instrumento de ação. E isso parte do pressuposto de que se deve ter o homem bom. A razão é de Kant: "Como pode uma árvore má produzir bons frutos?" Aí vem o papel da educação, também no conceito do grande filósofo alemão: "O homem só é homem pela educação". Para que, bem formado, possa praticar os mandamentos que se encontram na lei de D'us. Semelhante conhecimento de todos os nossos deveres como mandamentos divinos é, de acordo com os conceitos de Kant, a essência da religião.

Pode existir o encontro entre a filosofia kantiana e o judaísmo. Há aspectos comuns entre a compreensão de Kant e a confiança judaica no D'us que abrirá ao seu povo um novo caminho para o cumprimentos dos seus mandamentos, contra todas as resistências externas dos inimigos ou de um coração pecador. Isso explica porque filósofos judeus se acercaram do pensamento de Kant, especialmente Hermann Cohen, Franz Rosenzweig e Martin Buber, enquanto no país que foi berço dessa idéias prosperou uma ideologia que trouxe como conseqüência a bestialidade da II Guerra Mun-dial. A qualidade ético-religiosa tão proclamada não foi suficiente para deter os que, mesmo falando em nome da religião, na verdade não passaram de monstros morais. Quando o mundo se depara com a revivescência do nazismo, pode-se recordar Cohen: "O indivíduo emerge para a humanidade ética". E ela pressupõe respeito e humanidade.

A menos que o D'us de que falamos não seja o mesmo D'us dos criminosos de guerra. É uma hipótese que merece um estudo aprofundado.

O exemplo de Anne Frank

A vida de Anne Frank, em sua curta existência, tornou-se um símbolo. Conheci a casa, em Amsterdã, onde viveu o seu martírio. Olhei pela janela em que ela via o céu e, como manifestação humana, somente havia o campanário da igreja próxima. A casa foi preservada, para que se recorde sempre o significado do seu sacrifício. Ela morreu no campo de concentração de Bergen-Belsen, em 1945. Os dois anos de clausura, no sobrado holandês, foram registrados no seu histórico Diário, para que nada seja esquecido, desse período trágico. É isso que fazemos, quando recordamos, a qualquer pretexto, o que representou a perseguição nazista ao nosso povo. Para que não volte jamais.

Brasil: 500 anos de liberdade

E o Brasil, em todo esse processo? É sabido que, desde os primórdios, judeus e cristãos-novos habitaram a terra brasilis. Houve Tribunal do Santo Ofício entre nós, com o sacrifício de dezenas de crentes na fé mosaica. Mas é indiscutível que vivemos, com raras exceções, numa pátria em que prevalece a liberdade. As agressões a esse sentimento profundo são exceções que cumpre condenar, pois causa repugnância qualquer tipo de preconceito ou discriminação.


Tivemos, na história, o registro de grandes amizades. Essa doce exemplaridade talvez encontre no homem dos Sermões a sua maior figura. O padre Antônio Vieira, maior representante da eloqüência sacra em nossa literatura, manteve em seus quase 90 anos de vida uma relação de intensa simpatia com os judeus. Sua família, isenta de preconceitos, registrou diversos casamentos considerados mistos, na ocasião, como o da irmã Leonarda, casada com Simão Álvares de Lapenha, com quem teve filhos; Maria de Azevedo casou com Jerônimo Sodré Pereira; Catarina Ravasco de Azevedo com Rui de Carvalho Pinheiro e Inácia de Azevedo com Fernão Vaz da Costa. Todos de sangue semita.

A Companhia de Jesus era fortemente influenciada pela chamada "gente de nação", o que levou Vieira a uma grande identificação com o Velho Testamento e à defesa candente dos cristãos-novos perseguidos pelo Santo Ofício e a Ordem Dominicana. Acabaria, ele mesmo, sendo vítima da Inquisição. Foi pesquisado se tinha sangue impuro, "pois só um judeu defenderia tão ardorosamente outros judeus". Nada encontraram, era mesmo idealismo do pregador messiânico, que, chegando à condição de confidente de D. João IV, sugeriu-lhe retomar Pernambuco dos holandeses, mas não pela guerra, e sim por uma compra com o dinheiro emprestado pelos judeus, desde que lhes fosse permitida a livre entrada no país.

É dessa época a construção da primeira sinagoga brasileira - Kahal Zur Israel (Rochedo de Israel), que começou a ser pensada em 1630, com a chegada dos primeiros israelitas oriundos da Holanda a Recife. Eles queriam uma sinagoga e uma escola, da mesma forma que o padre José de Anchieta, um século antes, falava em construir uma escola ao lado de cada igreja. São semelhanças que devem ser lembradas.

Em 1642 pregou Vieira pela primeira vez em Lisboa. Havia necessidade de obter recursos financeiros para a aquisição de navios e armamentos, além da contratação de mercenários, como era costume na época. Sugeriu ao monarca a cooperação dos judeus - cristãos-novos ou não - lançando o opúsculo Razões apontadas a el-rei D. João IV a favor dos cristãos-novos para se lhes haver de perdoar a confiscação de seus bens, que entrarem no comércio deste Reino.

Pode-se compreender o alcance da sugestão pelo que afirma Mendes dos Remédios, no seu clássico Os Judeus em Portugal: "Defesa pronta, desassombrada, eloqüente, vigorosa, linguagem forte, lógica incisiva e fulminante. Esse escrito estalou como um trovão... O que não devia causar menos espanto, apreensão e temores era o saber-se que o paladino dos cristãos-novos e autor daquela Proposta era um jesuíta, homem então na pujança da vida e do talento, bem aceito na corte, adorado nos meios aristocráticos e devotos da capital, intimorato, eloqüente, generoso, e cujo saber e habilidade não conheciam limites - o padre Antônio Vieira".

Os inimigos eram os castelhanos e os holandeses, estes já instalados no Nordeste brasileiro, especialmente em Pernambuco. O pragmatismo de Vieira pode ser medido por essa afirmação: "Favorecer aos homens de nação ou admiti-los neste Reino, na forma que se propõe, não é contra lei alguma, divina ou humana, antes é muito conforme aos sagrados cânones... O judaísmo não passa de homens da mesma nação".

Com o seu apoio, organizou-se a Companhia de Comércio para o Brasil, fundamental para a reconquista de Pernambuco, apesar da forte oposição encontrada. Mas Vieira era muito firme nas suas convicções: "O Papa, em Roma, admitia judeus públicos (os que viviam na lei de Moisés) e sinagogas, por que se não havia de consentir em Portugal? O modo de processar na Inquisição os apóstatas era iníqüo". Por isso, a ele se atribui, quando estava em Roma, a autoria do Memorial a favor da gente de nação hebréia.

Foi um grande e inesquecível amigo dos judeus. Exemplos assim de intercâmbio entre católicos e judeus servem para consolidar a crença de que devemos ser amigos e lutar, juntos, pelos mesmos ideais de compreensão e solidariedade.

Arnaldo Niskier
é presidente da Academia Brasileira de Letras