As cicatrizes ainda continuam abertas e as controvérsias entre argentinos e britânicos sobre as Malvinas seguem marcadas por provocações e tensões, basicamente pela importância econômica e relevância territorial para cada uma das partes. A seguir, um breve estudo sobre a repercussão deste conflito na vida de toda uma comunidade judaica.

Pano de fundo

As Malvinas, ou Ilhas Falklands, em inglês, eram desabitadas quando foram descobertas pelos holandeses, no século 18. As potências colonialistas que travaram lutas pelas mesmas foram Espanha e, depois, Argentina. Em 1833 essas terras foram invadidas pelo Império Britânico, com o objetivo de servir de apoio para a abertura de rotas de navegação no Atlântico Sul.

No entanto, os governos argentinos nunca abandonaram a ideia de manter sua soberania sobre as ilhas, no que sempre contaram com o apoio da diplomacia brasileira. Tratava-se de uma luta pelo nacionalismo e a integridade do território, fortalecida a partir de 1930-1940, quando a aliança com os britânicos começou a ser questionada na Argentina. Durante a 2a Guerra, a principal atividade econômica local era a criação de carneiros.

Na década de 1980, Argentina e Inglaterra cortam relações diplomáticas, que foram retomadas durante a presidência de Carlos Menem. Sua política para as Malvinas foi denominada de "Guarda-chuva da soberania", razão pela qual o tema não era discutido. A visita às ilhas era permitida apenas a veteranos de guerra e seus parentes, que podiam chorar seus mortos nos cemitérios militares. Viu-se esta situação no filme "Iluminados por el fUego"(Argentina-Espanha 2005): O jornalista Esteban Leguizamón recebe a informação de que seu amigo Alberto tentou matar-se. Esteban vai até o hospital e encontra Alberto em coma. Em flashbacks,o espectador vê que os dois soldados haviam lutado juntos, 20 anos antes, na Guerra das Malvinas. Ambos voltaram do front com suas cicatrizes, como lembrança do horror e do inferno. Alberto nunca se recuperou. A depressão que o levou à tentativa de suicídio é mais um crime da ditadura militar argentina. Em 1982, a ditadura tentou perpetuar-se no poder apelando ao patriotismo dos argentinos: enviaram milhares de jovens para lutar contra o poderio militar britânico nas Malvinas.

A ascensão dos Kirchner, na década de 2000, trouxe em seu bojo o retorno do forte nacionalismo argentino, encontrando expressão em conflitos territoriais e na exploração de recursos naturais. Isso levou ao recrudescimento das disputas pela soberania argentina em Malvinas.

A importância dessas ilhas para a exploração da Antártida crescia em relevância. E a descoberta local de reservas de petróleo e gás e a alta no preço dos hidrocarbonetos aguçaram os embates com os britânicos. Estes reagiram pela mídia: para lá enviaram o príncipe William (2° na sucessão do trono), despertando a atenção da imprensa. Despacharam, também, um navio de guerra e um submarino armados com mísseis nucleares. Eram gestos simbólicos para demonstrar a capacidade de poder que, dificilmente, a combalida economia britânica teria como sustentar.

A estratégia argentina foi denunciar na ONU a permanência dos britânicos nas Malvinas como uma situação colonial, criticando o que chamaram de "militarização dos recursos naturais do Atlântico Sul". Já o Reino Unido afirmava que não se podia abandonar o direito de autodeterminação dos kelpers (como eram chamados os habitantes das Falklands) e o primeiro-ministro David Cameron chegou a afirmar: "Colonialistas são os argentinos".

Dito isso, analisemos a repercussão que esse conflito teve na vida dos judeus argentinos.

Judeus argentinos lutam na Guerra das Malvinas

Vale ressaltar um dado importante: na Argentina é obrigatório o alistamento militar. Todos os cidadãos devem servir o exército. Há um sorteio para isentar os chamados "número baixos", mas em geral judeus e não-judeus devem servir indistintamente. Assim, os contingentes militares sempre contaram com judeus e não judeus em suas fileiras. Porém, desde sempre foi hostil o comportamento das Forças Armadas com os judeus. E durante a Guerra das Malvinas não foi diferente.

Em 11 de abril de 1982, o jovem judeu argentino Silvio Katz chega às Malvinas junto com seus companheiros do 3° Regimento de Infantaria Mecanizada (RIMec 3), localizado na localidade de Tablada. Silvio, de apenas 19 anos, havia poucos dias tomara conhecimento de que a Argentina retomara as ilhas, mas nunca poderia imaginar ser transportado até lá num avião sem assentos, partindo da Base Aérea de Palomar apenas com roupa de verão e um fuzil que não funcionava.

Ainda sem se acostumar ao frio, Silvio foi trazido por seu subtenente Eduardo Flores Ardoino à dura realidade militar. Mais de 30 anos depois de encerrado o conflito, ele se lembra das torturas impostas por esse subtenente: "Castigava-me todos os dias da minha vida por ser judeu. Congelava minhas mãos na água, jogava minha comida dentro do lixo... e lá eu tinha que buscá-la com a boca... Dizia que os judeus são medrosos, além de outras mil palavras ofensivas. Ele curtia, ficava feliz me vendo sofrer. Eu podia apenas dizer aos demais soldados que eles experimentariam o mesmo (sofrimento) se fossem judeus como eu.

Nem os bombardeios ingleses em 1° de maio de 1982 fizeram com que Flores Ardoino deixasse de tratar Sílvio Katz como seu "inimigo". Ele era argentino, mas era judeu. Pelo contrário, com o passar dos dias, descarregava todas suas tensões intensificando os maus tratos. O jovem judeu passava noites inteiras sem dormir pelo intenso ruído das bombas, acumulando-se também dias e dias sem comer, pois seu superior lhe negava alimentos.

Enquanto preparava o grupo para o combate, Flores Ardoino conseguia uma garrafa de uísque e colocava todos os soldados enfileirados. Dava, a seguir, um trago a cada um deles, mas ao chegar a Katz, dizia: "Você não vai beber, você será morto". O soldado judeu se recorda de ter pensado que seria melhor morrer e torcia para que fosse logo. Encerrada a guerra, Katz denunciou o militar à justiça.

Nazismo em Malvinas

Por mais terrível que pareça, a história de Silvio Katz não é a única acerca da raiva dos oficiais contra os soldados judeus nas Malvinas. Relatos e denúncias fazem parte do livro do jornalista judeu Hernán Dobry,"Los Rabinos de Malvinas",publicado no 30° aniversário do conflito. Mesmo sem saber o número exato de combatentes judeus, Dobry conseguiu localizar 25 deles, sendo que 10 deram depoimentos reveladores.

Em meio aos bombardeios, enquanto ingleses destruíam as defesas antiaéreas argentinas, um suboficial argentino ficou surpreso ao saber que Pablo Macharowski, do 4° Grupo de Artilharia Aerotransportada, lutara até cair ferido. Numa ocasião, diz: "E estranho que você, um judeu, esteja combatendo aqui". O jovem Macharowski respondeu: "Sou argentino e nada tem a ver minha condição de judeu ou não".

A poucos quilômetros de Macharowski, Claudio Alejandro Szpin, do 3° Regimento de Infantaria Mecanizada (RIMec 3), vivia situação similar enquanto fazia guarda com seu amigo Vainroj. Para alguns dos seus superiores, ser judeu impossibilitava ser totalmente "argentino" - como se isto fosse excludente. E, os oficiais que assim pensavam, faziam de tudo para tornar a vida dos soldados judeus um inferno.

No continente, grupos de soldados se preparavam para cruzar até as Malvinas e combater. Alguns viajavam durante a noite, voando perto da água para não serem detectados e derrubados pelos radares britânicos. Em 3 de junho de 1982, Marcelo Eddi, do Regimento de Infantaria Patrícios (RIP 1) já estava em Comodoro Rivadavia. Nessa pequena cidade, seu superior lhe ordenou que fizesse guarda frente ao galpão dormitório. Ali anunciaram aos soldados que, nesse dia, a seção de morteiros sairia rumo às ilhas. Já prestes a partir, o chefe da unidade afastou Marcelo Eddi do grupo, dizendo-lhe que "não partiria por ser judeu".

Eddi fez tudo o que estava a seu alcance para viajar às Malvinas, trocando de lugar com outro soldado que estava apavorado de embarcar. Em 6 de junho chegou ao cerro Dos Hermanas na primeira linha de fogo. Ele comenta: "O 1° Tenente que nos acompanhava parecia ser ilho de Hitler; era um nazista, vestia-se como ele e penteava o cabelo com gel como ele". Eddi foi colocado de lado. Então, esse tenente se aproximou dele e lhe disse: "Vou levar todos os soldados criollos1,mas jamais um judeu". Então Eddi, ironicamente, lhe respondeu: "Não há problema. Acontece que por aqui todos são valentes como o senhor". O tenente o repreendeu forte por ter dito aquilo, dizendo: "Não me conteste, soldado". Eddi, sem nada a perder, replicou: "O que vai me acontecer? O senhor vai me bater ou me pôr na cadeia?". O tenente, irritado, o ofendeu com palavrões. Desta forma acabou uma das várias conversas agressivas entre um soldado judeu e seu superior.

Uma situação parecida experimentou Sigrid Kogan, também do 1° Regimento de Infantaria. Sua unidade estava ainda em formação, em Palermo, e os oficiais passavam com listas selecionando os soldados que iriam às Malvinas. Mais uma vez, o fato de ser judeu foi motivo de deboche e ódio por parte dos superiores. Os oficiais confinaram todos os soldados num lugar de agrupamento e, de repente, perguntaram: "E os judeus não virão? Quem aqui é judeu? Soldado Kogan, um passo à frente... e quando mencione o nome Fernandez, diga 'Presente'". Assim, o judeu Kogan foi obrigado a usar outro sobrenome e assim substituir outro soldado que sequer havia chegado ao grupo. Fernandez não estava na lista original dos que viajariam às Malvinas, e o judeu Kogan acabou sendo seu substituto.

O trato a ele dado não mudou ao chegar às Ilhas Malvinas e, muito menos, após o início dos bombardeios. Ao sentir-se mal, ficava na sua trincheira e evitava ir à enfermaria para não ser maltratado. Num depoimento em seu diário pessoal, registrou: "Mesmo nas horas de maior dor evitei ir à enfermaria para não ouvir a fala agressiva de meu superior".

Agressões absurdas

Muitas vezes, as ofensas beiravam o absurdo. Adrián Hasse, um soldado do 6° Regimento de Infantaria Mecanizada (RIMec 6), localizado na cidade de Mercedes, comenta que, em meio aos bombardeios ingleses sobre o Monte Goat Ridge, confessou a seu superior: "Um dia desses o Subtenente Frinko me disse: 'Sabe uma coisa? Eu odeio judeus'". Adrián, ainda estupefato pela observação, ousou perguntar-lhe: "Por quê?". E Frinko lhe retrucou: "Não sei, mas os odeio".

O antissemitismo não era dissimulado e, por vezes, se manifestava abertamente com extrema violência e desprezo. Essa postura antijudaica se intensificava com o passar dos dias, acentuando-se ainda mais quando começaram os bombardeios britânicos. Era como se os bombardeios legitimassem as agressões contra soldados judeus.

Receber encomendas de casa era excelente pretexto para despertar a ira dos oficiais. Sergio Vainroj comenta que, em junho de 1982, recebeu uma encomenda e o sargento lhe ordenou: "Traga isso para cá". Olhou o pacote e desabafou: "Judeu maldito, te enviam encomendas, não? Como pode ser que teu sargento não receba nada? ". O sargento gritava palavras de baixo calão e, fervendo de ódio, acusou Vainroj de insubordinação perante o capitão. Ele ainda "chegou a solicitar que o enviassem ao front, na primeira ileira de combatentes". O soldado Claudio Alejandro Szpin, citado anteriormente, apanhou por intervir e querer defender seu amigo Vainroj. A história de Vainroj teve um inal feliz, pois através da intervenção de outro superior foi deixado longe da frente de batalha.

Torturas e "bailes"

Alguns soldados judeus que receberam maus-tratos nas Malvinas não se surpreenderam com a violência, a intolerância e os abusos de poder reinantes nas fileiras do exército argentino. A discriminação contra judeus não era diferente para os soldados nascidos em 1962 e 1963. Desde décadas anteriores, era hostil o comportamento dos membros das Forças Armadas. Não podemos afirmar que se trate de um fenômeno institucional, mas certamente essa postura existiu com bastante frequência.

As hostilidades incluíam insultos e maus-tratos físicos, sobrecarga de tarefas, especialmente aquelas que eram insalubres. Jorge Carlos Sztaynberg, soldado da 10a Companhia de Engenheiros Mecanizada, baseada na província de Buenos Aires, lembra haver suboficiais especialmente nomeados para chutar e maltratar judeus.

Havia soldados judeus que eram convocados para as sessões de "baile" (tortura), as vezes em terrenos pedregosos ou sob baixas temperaturas. "Eramos cinco soldados judeus e éramos perseguidos. Às 2h da manhã nos acordavam e nos torturavam apenas de cuecas, ceroulas e camisetas. Isto se realizava em lugares inóspitos, no campo, obrigando-nos a aplaudir com cactos nas mãos, arrastar-nos na lama e no chão pedregoso de granito. Todos tínhamos os cotovelos e pés sangrando", lembra Gustavo Guinsburg, soldado judeu da 11a Brigada de Infantaria Mecanizada, de Rio Gallegos. Sílvio Katz também concorda: "Durante o serviço militar (Colimba) torturavam todos nós, judeus, uma ou duas vezes por semana".

Parte dos castigos aplicados aos judeus encontravam "explicação" na religião, vinculando-os à acusação de que os judeus haviam crucificado Jesus. "Recebíamos maus-tratos, nos chamavam de 'judeus malditos', e diziam que era preciso matar-nos, a todos. O oficial Kauffmann, dizia que nós (judeus) havíamos matado Jesus, e que tínhamos toda a culpa nesta vida; éramos traidores e ele (Kaufmann) iria me converter ao Cristianismo. Ele me ordenava ir à missa. Eu ficava do lado de fora da capela e escutava. Certa vez, disse­me: 'Você será um coroinha'. Eu aceitei, para sua surpresa. Colocou em mim a túnica e fui para o lado do padre. 'Muito bem, farei de você um bom cristão'. E eu lhe respondi: 'O único que fiz foi ajudar um padre, mas continuarei sendo judeu'", relata Cláudio Alejandro Szpin.

O antissemitismo que pairava no exército argentino era intenso, inclusive com fortes ameaças de morte e lembranças dos nazistas e de Hitler. "Realmente não entendo como vocês (judeus) ainda estão aqui, pois os nazistas já deveriam ter matado todos", lembra ter ouvido o soldado Marcelo Laufer do 1° Regimento de Infantaria.

Pablo Kreimer, fez um discurso similar: "Havia um cabo que, enquanto fazíamos a instrução militar básica, passava o dia inteiro cantando a seguinte estrofe: 'Aí vem Hitler pelo paredão, matando judeus para fazer sabão'. Certo dia, esse cabo comentou com muito orgulho: 'Sabia que Hitler também foi cabo?'. E Laufer lhe respondeu: "Isso não é coincidência, pois ele [Hitler] não dava para nada melhor do que isso, como o senhor".

O retorno de Malvinas

Em 14 de junho de 1982, o general Mario Benjamin Menendez (1930­2015) assinou a rendição argentina. O clima entre os soldados judeus era de ódio e dor pela morte de companheiros, e sossego e alívio pelo encerramento de três meses de sofrimento.

Porém, poucos imaginavam que o sofrimento dos soldados não acabara: seus correligionários, judeus argentinos, pouco fizeram para reintegrá-los à vida normal. Vários procuravam retomar estudos ou buscar trabalho. Muitos entraram em depressão. Atualmente, estatísticas demostram que, entre 1982 e 2012, o número de suicídios de ex-combatentes superou àquele de soldados mortos em combate na própria guerra.

As instituições da comunidade judaica não se preocuparam pelo estado psicológico-emocional dos soldados judeus. Entidades como DAIA e AMIA nem tomaram conhecimento do delicado momento quando eles voltaram para casa; muito menos da forma em que cada um deles continuou sua vida particular. O desinteresse comunitário provocou uma forte dor entre os ex-combatentes judeus.

Diante dessa situação, o jornalista Hernan Dobry propôs ao então Presidente da DAIA, Aldo Donzis, organizar um ato oficial para homenagear os combatentes judeus, reconhecendo-lhes sua bravura nas Malvinas. Nessa ocasião, seria distribuída uma lista com os dados de cada soldado. Esse ato, no entanto, não foi realizado. A campanha comunitária foi retomada somente em 17 de novembro de 2011, quando os soldados Szpin, Vainroj e Katz foram até Donzis e "cobraram" sua homenagem, solicitando também realizar visitas nas escolas judaicas e contar suas histórias do front.

Passou-se outro ano e somente em 20 de abril de 2012 esses soldados foram finalmente reconhecidos por seus atos de bravura e heroísmo. A comunidade judaica argentina pode estar orgulhosa de ter em suas fileiras judeus orgulhosos de fazer parte de nosso povo milenar.

1 Na América espanhola,criollo,em geral, designa os descendentes de europeus nascidos na América. O termo era, na época, usado como sinônimo para todo aquele que nascesse fora de seu país de origem. Atualmente, o termo apresenta várias nuances desse significado original, dependendo de cada país ou região.

Bibliografia

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Ben Dor, Graciela,Católicos, nazis y judios. La Iglesia argentina en los tiempos del Tercer Reich.Editora Lumière. Buenos Aires 2003.

Dobry, Hernan,Los Rabinos de Malvinas. Editora Vergara. 1a edición. Buenos Aires

Lotersztain, Gabriela,Los judios bajo el terror: 1976-1983. Ejercitar la Memoria. Buenos Aires 2008.

Lvovich, Daniel, Nacionalismo y antisemitismo en la Argentina. Editora Vergara. Buenos Aires 2003.

Reuven Faingold é historiador e educador; phd em história e história judaica pela Universidade Hebraica de Jerusalém. É responsável pelos projetos educacionais do "Memorial da Imigração Judaica e do Holocausto" de São Paulo.