Como podemos lutar contra o antissemitismo que toma conta dos Estados Unidos e da Europa? A historiadora Deborah Lipstadt responde, no artigo que reproduzimos a seguir, “A melhor maneira de combater o antissemitismo? A alegria judaica!”. Esse é o título da matéria publicada pela historiadora em outubro, e faz parte de uma série que celebra um ano do massacre na sinagoga “Tree of Life”, em Pittsburgh.

Escrevo este texto após uma tentativa de massacre em Halle, Alemanha, e me antecipando à celebração de um ano da tragédia da sinagoga “Tree of Life”, o pior ataque antissemita já ocorrido em território americano. Mas, não fosse uma porta fortemente trancada, em Halle, essa também poderia ter sido uma tragédia de proporções indescritíveis.

Para mim, historiadora do antissemitismo, a maneira mais natural, ou mesmo lógica, de marcar esses eventos difíceis seria lamentar o fato de que esse ódio, dos mais antigos, continue a crescer, evoluir e se desenvolver, tanto nos partidos de direita quanto nos de esquerda. Eu poderia mostrar como os terroristas de direita – Halle, Pittsburgh e Poway, entre tantos outros – estão ligados entre si, apesar do fato de que nenhum deles provavelmente conheça o outro. Podem não estar conectados, pessoalmente. Mas não são lobos solitários. Todos leem os mesmos artigos, citam os mesmos blogueiros, postam nos mesmos websites e compartilham os mesmos ódios. De fato, nesta nossa era da Internet e das mídias sociais, o conceito de lobo solitário é um anacronismo.

Apesar de o antissemitismo de direita ser mais declaradamente violento, não falta antissemitismo na esquerda. Nós o vemos na liderança do Partido Trabalhista britânico, nos tuítes e comentários de pessoas como a deputada democrata norte-americana Ilhan Omar, sobre o movimento BDS, em seu intenso desprezo e ódio por Israel, e na maneira como a identidade das vítimas do Holocausto judaico está sendo removida das celebrações do Holocausto.

Assistam, por exemplo, a declaração emitida na Grã-Bretanha, pelo University College Union (UCU), principal grupo estudantil no Reino Unido, acerca do Dia de Lembrança do Holocausto. A declaração lamentava a perseguição alemã aos “sindicatos, inclusive os socialdemocratas e os comunistas”, “Roma e o povo sinti, da Europa”, “negros”, “pessoas com necessidades especiais”, “maçons”, “gays e lésbicas”, “Testemunhas de Jeová” e “associais”, que incluem “pedintes, alcoólatras, viciados, prostitutas e pacifistas” e “poloneses não-judeus e prisioneiros de guerra eslavos”.

Nessa lista, abrangente e um tanto questionável, não há menção aos judeus. Após uma enxurrada de críticas, a UCU se desculpou e inseriu os judeus em sua declaração. Mas, para início de conversa, há que se perguntar o que os teria levado à omissão dos judeus.

Hoje em dia, os antissemitas, entre os quais aqueles que no passado jamais ousaram expressar publicamente seu ódio, sentem-se encorajados a fazê-lo. Na verdade, sentem-se mais do que encorajados. Acreditam que haja uma vasta parcela da opinião pública e de líderes mundiais que, ainda que não o expressem abertamente, são simpáticos a seu nacionalismo branco – que inclui o ódio aos judeus.

Mas, por mais que me preocupe com o que os antissemitas possam fazer aos judeus, preocupa-me ainda mais o que nós possamos fazer a nós mesmos em virtude do antissemitismo.

O antissemitismo trata o judeu como “objeto” – o que fazem aos judeus. O antissemitismo elimina o judeu como “sujeito” – o que os judeus fazem. Recentemente, isso me voltou à lembrança quando um rapaz que era meu aluno há alguns anos apareceu em meu gabinete usando uma kipá, algo que nunca fizera antes. Apesar de tentada a lhe perguntar, “E aí, o que o levou a usar a kipá? ”, fiquei calada pois achei inadequado. Discutimos seu trabalho e seus planos de pós-graduação.

Quando se levantou para ir embora, ele se virou para mim e, com um visível entusiasmo, apontou para a cabeça, e me perguntou: “Você notou a minha kipá? ”. Fingindo pouco caso, respondi: “Ah, sim, isso é novidade, não? ”. Ao que ele rapidamente, e com orgulho, me disse que, em virtude dos ataques aos judeus, ele fazia questão de mostrar a essa gente que eles não o assustavam. “Essa é minha resposta àqueles que nos odeiam”.

Fiquei calada, mas meus sentimentos estavam todos embaralhados. Estava orgulhosa de sua “chutzpá”, sua audácia e sua recusa em se acovardar diante das ameaças (apesar de que pessoalmente, não o tinham ameaçado). Mas meu coração se partiu, pois sua motivação para se identificar como judeu fora provocada pelos que nos odeiam. Ele havia dado poder a eles sobre sua identidade. Como eles se manifestam ou agem contra nós, ele fortaleceu sua identidade judaica. Ele havia sido motivado pela tristeza da vida judaica, e não pelo júbilo de ser judeu.

Em Pittsburgh, Poway e Halle, as vítimas pretendidas estavam dentro da sinagoga quando foram assassinadas. Na sinagoga “Árvore da Vida”, elas haviam chegado cedo, no início do serviço religioso. Imagino que alguns lá estivessem para dizer o Kadish por um luto na família, ou quisessem assegurar que houvesse o minyan, o quórum necessário para que outros pudessem dizer o Kadish. Para algumas das vítimas, a sinagoga era o seu “clube” e adoravam lá estar. Alegravam-se em se encontrar e passar algumas horas juntos, todo Shabat.

Em Halle, após o ataque, quando a polícia não deixou sair quem estava dentro da sinagoga pois a situação ainda não estava controlada, os congregantes continuaram a rezar, estudar o Livro Sagrado e cantar. Logo depois, quando foram transferidos para um hospital local, reuniram-se na cafeteria e terminaram as orações com cantos e danças. Só então quebraram o jejum e tomaram cerveja.

Aquilo foi uma afirmação de vida judaica diante da possibilidade da morte. Aqueles judeus nos deram uma importante lição. Mesmo quando os outros se levantam contra nós, nós reafirmamos nossa identidade judaica. Mesmo estando de prontidão – e seríamos loucos de não estar – nós o fazemos para poder ter a liberdade de celebrar a vida judaica de todas as suas formas.

Somos portadores de uma tradição magnífica, que se expressa em contexto religioso, intelectual, filantrópico, artístico, comunitário e político. Apesar do empenho e esforços de tantas gerações de não-judeus em nos prejudicar, matar e até aniquilar, nós celebramos nossa tradição multifacetada e celebramos tudo o que ela deu ao mundo. E nós o fazemos – não por causa da tentativa de nos destruir – mas apesar dela.

Somos muito, muito mais do que vítimas.

Deborah E. Lipstadt é Historiadora. Atualmente é Professora da Cadeira Dorot de História do Holocausto, na Emory University e é membro do Conselho do Memorial do Holocausto.

 

Deborah Esther Lipstadt

Deborah Esther Lipstadt é historiadora norte-americana. Uma das autoridades acadêmicas mais respeitadas no tema do Holocausto e antissemitismo, é mais conhecida por ser a autora dos livros Denying the Holocaust (1993), History on Trial: My Day in Court with a Holocaust Denier (2005) e The Eichmann Trial (2011). Desde 1993 é a professora titular da cátedra Dorot de História Judaica Moderna e Estudos do Holocausto, na Emory University, em Atlanta, Geórgia.

Lipstadt nasceu na cidade de Nova York, filha de Miriam e Erwin Lipstadt. Na juventude, estudou no Hebrew Institute de Long Island, e com o Rabino Emanuel Rackman,

Rabino americano, da linha Ortodoxa Moderna, tendo passado várias férias de verão no Camp Massad, um acampamento judaico-sionista para jovens.

Ela passou o primeiro ano do Ensino Médio em Israel, durante a Guerra dos Seis Dias, como aluna de intercâmbio na Universidade Hebraica de Jerusalém. Terminou seus estudos de graduação em História Americana no City College de New York, em 1969, com o título de Bacharel. Matricula-se na Brandeis University, onde completa o Mestrado, em 1972, e o Doutorado em História Judaica, em 1976.

Após receber o título de Doutora, Lipstadt primeiro leciona na Washington University, em Seattle, e depois na UCLA, em Los Angeles. Em 1985, ela retorna à Brandeis University como diretora da instituição independente, Brandeis-Bardin Institute, durante dois anos. A seguir, recebe uma bolsa de pesquisa do Centro Internacional Vidal Sassoon para o Estudo do Antissemitismo, na Universidade Hebraica de Jerusalém, quando se aprofundou no tema da negação do Holocausto, tendo ajudado a criar o Instituto de Estudos Judaicos nessa instituição. Já na qualidade de consultora do Museu Memorial do Holocausto dos Estados Unidos, o Presidente Bill Clinton a indica, em 1994, como membro do Conselho do Memorial do Holocausto.

Ao longo de sua bela carreira, Deborah Lipstadt recebeu vários prêmios e doutorados honorários de várias universidades. Após a publicação do livro “Negando o Holocausto”, em junho de 1993, ela recebeu o National Jewish Book Award de 1994.

Deborah Lipstadt ficou internacionalmente famosa em setembro de 1996, quando o negacionista do Holocausto, David Irving, abriu um processo cntra ela e sua editora, a Penguin Books, por difamação, em um tribunal britânico, por terem caracterizado alguns de seus trabalhos e declarações públicas como negação do Holocausto, em seu livro Denying the Holocaust (Negando o Holocausto).

A lei inglesa coloca o ônus da prova sobre o réu e não sobre o requerente. Lipstadt e a editora Penguin ganharam a causa demonstrando perante o tribunal que as acusações de Lipstadt contra Irving eram consistentemente verdadeiras. O jornal The Times escreveu sobre a vitória da historiadora: “A História ganhou seu dia no tribunal com uma vitória esmagadora”.

Esse julgamento deu origem ao filme Denial (Negação), de 2016, com a atriz Rachel Weisz no papel de Lipstadt. O filme se baseou em seu livro de 2005, History on Trial: My Day in Court with David Irving (A História em julgamento: Meu dia no Tribunal com David Irving), dirigido por Mick Jackson.

Em fevereiro de 2007, Lipstadt denunciou uma nova vertente do negacionismo do Holocausto, que ela denominou de “negação branda”, no jantar anual de fund-raising da Federação Sionista, em Londres. Referindo-se a grupos como o Conselho Muçulmano da Grã-Bretanha, ela teria dito: “Quando grupos de pessoas se recusam a celebrar o Dia da Lembrança do Holocausto a menos que se dedique igual atenção e tempo ao preconceito contra os muçulmanos, estamos diante de uma ‘negação branda’ ”.

De forma similar, ela criticou o filósofo e historiador alemão, Ernst Nolte1, por dedicar-se a promover a “negação branda” do Holocausto, argumentando que Nolte pratica uma forma ainda mais perigosa de negacionismo do que os negadores do Holocausto. Referindo-se a Nolte em uma entrevista em 2003, Lipstadt afirmou: “Historiadores como o alemão Ernst Nolte, de certa forma são mais perigosos ainda que os negacionistas. Ele é um antissemita de primeira linha, que tenta reabilitar Hitler dizendo que ele não era pior do que Stalin. Mas ele é cuidadoso em não negar o Holocausto. Os negadores do Holocausto tornam a vida de Nolte mais confortável. Com sua argumentação radical, eles conseguiram puxar o centro da questão sobre o negacionismo histórico mais para o seu lado. Consequentemente, um extremista menos radical, tal como Nolte, sente-se mais próximo ao terreno do “meio”, menos radical e mais indefinido, o que o torna mais perigoso”.

Deborah Lipstadt voltou ao tema do “negacionismo brando” do Holocausto ao reagir à declaração do governo Trump no Dia Internacional de Recordação do Holocausto, em 27 de janeiro de 2017, declaração essa que foi condenada pela ausência de uma menção específica aos judeus como as principais vítimas do Holocausto e do antissemitismo. “O Holocausto foi ‘despido de Judaísmo’. É possível que tudo tenha começado com um erro. Simplesmente talvez alguém não tenha percebido que o que estavam fazendo. Mas também é possível que alguém o tenha feito deliberadamente”.

Em maio de 2018, ela publicou mais um livro, “Antisemitism: Here and Now” (Antissemitismo: Aqui e Agora). Infelizmente, esse livro foi profético. “Quando esse livro for publicado”, ela escreveu em sua introdução, “já conheceremos novos exemplos de antissemitismo”. Cinco meses mais tarde, um supremacista branco matou 11 pessoas na Sinagoga “Tree of Life” em Pittsburgh, no que constituiu o ataque mais mortal contra a comunidade judaica nos Estados Unidos. O incidente fez com que o livro de Lipstadt se tornasse ainda mais crucial para entendermos o desalentador ressurgimento do antissemitismo – tanto de esquerda quanto de direita.

Em uma entrevista, concedida no final de 2011 a historiadora, declarou que “Se o antissemitismo se tornar a razão através da qual se reflete a visão judaica de mundo, se esse antissemitismo se tornar o seu prisma, então tudo fica muito pouco saudável – e a tradição judaica jamais quis isso.”