A chaga do antissemitismo volta a mostrar suas garras em pleno século 21, e em pleno coração da Europa. Marcaram o cenário, a partir de 2012, ataques bárbaros contra alvos judaicos, numa escola em Toulouse, no museu em Bruxelas, no mercado casher em Paris e na sinagoga em Copenhague.

O terrorismo oriundo do Oriente Médio, inspirado por grupos como o Estado Islâmico e a Al-Qaeda, inflama jovens em um continente que vive sua pior crise econômica e social desde a 2ª Guerra Mundial. Líderes políticos e comunitários debatem os caminhos para proteger os judeus e impedir a repetição de tragédias.

Sinal dos tempos, o presidente da comunidade judaica na Alemanha, Josef Schuster, sugeriu que os judeus evitem usar kipá (solidéu) ao passar por áreas onde se registra maior hostilidade. “O ponto é se, em uma área com grande proporção de muçulmanos, faz sentido ser reconhecido como judeu por usar uma kipá ou se não é melhor usar outra forma de cobrir a cabeça”, afirmou ele. “É um desdobramento que eu não esperava há cinco anos e é, de certa maneira, chocante”.

Acompanhado à distância por guarda-costas e cinegrafista com uma câmera escondida na mochila, o jornalista israelense Zvika Klein passou dez horas caminhando por ruas de Paris, com kipá e tsitsit. Enfrentou xingamentos e ameaças. Postou o vídeo no Youtube.

A experiência de Klein se soma a monitoramentos feitos por entidades judaicas e instituições voltadas ao combate ao antissemitismo. Ataques como o perpetrado em janeiro contra o mercado casher de Paris recebem atenção da mídia, mas inúmeras manifestações antissemitas no cotidiano não são registradas pela cobertura jornalística. Um levantamento feito pelo norte-americano Pew Research Center demonstrou que as hostilidades a judeus atingiram um ápice em relação aos últimos sete anos, pois em 2013 foram registrados episódios em 77 países (39% do total, contra 26% em 2007). Na Europa, o estudo mostrou manifestações de antissemitismo em 34 dos 45 países do continente (76%).

Em meados da década passada, o espectro do antissemitismo rondava, sobretudo, países menores da Europa, como a Hungria. Atualmente, seus efeitos atingem nações centrais, como Alemanha, França e Reino Unido. Em 2014, houve um aumento de 30% em crimes antissemitas no cenário alemão, com 1.076 casos de vandalismo em cemitérios, incitamento ao preconceito e pichações de suásticas em sinagogas.

A comunidade judaica alemã passou a receber seu jornal mensal em envelopes sem marcas externas, a fim de impedir a identificação da origem do destinatário. Vivem em solo alemão aproximadamente 105 mil judeus, o triplo do número verificado em 1991. Naquele ano, a URSS se desintegrou, e a Alemanha virou um destino importante para judeus que fugiam da instabilidade de terras governadas por Moscou.

Em janeiro, às vésperas do 70° aniversário da libertação de Auschwitz, a primeira-ministra alemã Angela Merkel declarou: “Temos de lutar contra o antissemitismo e todas as formas de racismo desde o início”. Ela liderou, em setembro, uma manifestação no portão de Brandemburgo, em Berlim, sob a bandeira do combate ao preconceito antijudaico. Principal aliado diplomático de Israel na Europa, a Alemanha reforçou a segurança de edifícios de comunidades judaicas espalhadas pelo país.

Depois dos ataques de janeiro, o presidente francês, François Hollande, também passou a se mobilizar. “Vocês, franceses de fé judaica, seu lugar é aqui, em seu lar, a França é seu país”, discursou ele na cerimônia para lembrar a chegada das tropas soviéticas a Auschwitz. Em 2014, cerca de 7 mil judeus emigraram da França, para fazer Aliá, na primeira vez em que os franceses alcançam o primeiro lugar no ranking de imigrantes que desembarcam em Israel. Em 2013 e 2012, haviam emigrado 3,4 mil e 1,9 mil, respectivamente.

Hollande comparou o antissemitismo à lepra, “que sempre retorna quando as civilizações acreditam ter-se livrado dela”. O primeiro-ministro Manuel Valls fez, no Parlamento francês, um dos discursos mais incisivos e emocionantes sobre o momento vivido pela nação. “Devemos responder a essa situação excepcional com medidas excepcionais”, sustentou o premiê, para em seguida descartar “medidas excepcionais que desviem dos princípios da lei e dos valores” na França. No pacote de medidas, novas leis com punições mais rápidas e mais severas, reforço das agências de segurança e contraterrorismo e monitoramento de suspeitos de envolvimento com grupos terroristas.

O presidente Hollande também recebeu líderes judaicos e muçulmanos, a fim de buscar pontes de diálogos entre as comunidades. Ao se referir às questões das fontes do antissemitismo e ao jihadismo, ele lembrou que a destruição de 250 túmulos em um cemitério judaico na região francesa da Alsácia foi perpetrada por jovens de origem cristã.

Roger Cukierman, dirigente da comunidade judaica francesa, que contabiliza cerca de 470 mil pessoas, alertou para o perigo representado pela extrema direita, liderada, na França, por Marine Le Pen. Recentemente, de olho na Presidência, a filha de Jean Marie Le Pen passou a investir numa moderação de discurso em relação aos judeus, na tentativa de ampliar seu eleitorado. No entanto, Cukierman descartou a aproximação e destacou a presença, no Front National, de “negacionistas, vichyistas e petainistas”, referindo-se a colaboradores da ocupação nazista, e desafiou Marine a denunciar as infames declarações antissemitas feitas por seu pai, condenado por elas em tribunais franceses.

Ao atravessar o canal da Mancha, o ódio racial também contamina. Em uma pesquisa, mais da metade dos judeus britânicos entrevistados afirmaram terem testemunhado mais manifestações de hostilidade nos últimos dois anos do que em períodos anteriores. O estudo da iniciativa Campanha Contra o Antissemitismo mostrou que 25% da comunidade judaica, de 269 mil integrantes, cogitou deixar o país, enquanto 54% das respostas apontaram não enxergar futuro para o judaísmo no Reino Unido.

Duas personalidades da comunidade judaica britânica jogaram luzes sobre as incertezas. “Nunca me senti tão desconfortável como judeu no Reino Unido como nos últimos doze meses”, declarou Danny Cohen, diretor da TV BBC. “E isso me fez pensar se realmente aqui é um local para o longo prazo. Porque você sente isso. E senti isso de uma forma que nunca havia sentido antes”.

A atriz Maureen Lipman ecoou os temores de Danny Cohen. Descreveu o avanço do antijudaísmo como “muito, muito deprimente” e revelou ter pensado na hipótese de deixar o país. “Quando a economia vai mal, então se volta ao bode expiatório de sempre”, observou Maureen, que estrelou no filme “O Pianista”, de Roman Polanski.

Em 13 de janeiro, o primeiro-ministro David Cameron recebeu lideranças comunitárias e assegurou que o governo, em cooperação com agências de segurança e forças policiais, não poupa esforços para enfrentar o antissemitismo. Em carta ao rabino-chefe Ephraim Mirvis, o premiê escreveu: “Um amigo judeu me perguntou, certa feita, se sempre será seguro, para seus filhos e netos, viver na Grã-Bretanha. A resposta a essa questão sempre será ‘sim’. Espero que nos próximos anos atinjamos um ponto em que a questão nem precisará ser colocada”.

Abe Foxman, norte-americano e símbolo da luta contra o antissemitismo, por sua histórica atuação da Liga Antidifamação, descreveu a situação atual do judaísmo na Europa recorrendo à 2ª Guerra Mundial. Para ele, um êxodo judaico do continente seria “uma vitória póstuma para Hitler, e realizaria a sua visão de Judenrein” – uma Europa livre de judeus.

JAIME SPTIZCOVSKY, foi editor internacional e correspondente da Folha de S. Paulo em Moscou e em Pequim.