Com "Shoah", Claude Lanzmann conquistou um lugar na História. O documentário é o registro do Holocausto pela voz das testemunhas. Durante mais de 9 horas os espectadores assistem ao que ele chamou de "um coro de vozes e rostos que emergem; vítimas, observadores e assassinos", tornando-nos "testemunhas da morte e dos atos de resistência à morte".

Longo e angustiante, o filme seinicia em Chelmno, onde, em dezembro de 1941, os nazistas utilizaram pela primeira vez gás asfixiante para executar, de forma mais “rápida e eficiente”, a “Solução Final para o Problema Judaico”. Para produzir sua obra prima, Lanzmann nos leva, entre outros, a Treblinka, Belzac, Sobibor, Auschwitz e cidadezinhas adjacentes. E termina em Israel, com o testemunho dos combatentes do Levante do Gueto de Varsóvia.

Iniciando a filmagem em 1974, dedica os 11 anos seguintes à produção do documentário. “Senti-me como um cego, nos 12 anos de filmagem e edição do “Shoah”; um cavalo com antolhos. Não conseguia olhar à direita nem à esquerda, apenas à frente, diretamente para dentro do círculo negro da Shoá”. Pesquisou filmes, falou com sobreviventes e historiadores, como Yehuda Bauer e Raul Hilberg, este último o “pai da história” do Holocausto e que aparece no documentário dando mais detalhes sobre a Solução Final.

Até 1978 ele protelou a visita aos campos nazistas. “Quando vi que a aldeia de Treblinka ainda existia e que ainda havia pessoas que tinham testemunhado o horror e que ainda havia uma estação ferroviária funcionando normalmente... aí explodiu dentro de mim a bomba-humana em que eu me tornara”. Muitos dos aldeões poloneses que encontrou continuavam perturbadoramente indiferentes, alguns até risonhos, quanto à tragédia que se abateu durante a 2ª Guerra sobre seus vizinhos judeus, e tantos outros que os trens levaram à morte em Treblinka.

Lazmann acreditava que o Holocausto não podia ser interpretado, compreendido; foi um trauma que só podia ser transmitido e internalizado através do testemunho dos que sobreviveram. Durante três anos se dedicou a localizar, em 14 países, o maior número de sobreviventes, testemunhas oculares, observadores poloneses acidentais, oficiais nazistas, e judeus combatentes que haviam sobrevivido ao Levante do Gueto de Varsóvia. Entrevistou e filmou mais de 350 horas de material bruto. As entrevistas são intercaladas com paisagens dos locais onde, na década de 1940, haviam sido construídos os campos de morte, e com tomadas dos trens percorrendo os mesmos trilhos que, outrora, levaram milhões de judeus às câmaras de gás.

Ele não foi o primeiro cineasta a levar às telas o Holocausto, mas, na década de 1970, o assunto ainda era uma espécie de tabu. A maioria dos sobreviventes estavam mudos. Queriam tocar a vida, não reviver o horror e, acima de tudo, sentiam-se culpados de ter sobrevivido. Escritores como Elie Wiesel, Primo Levi e Jean Améry haviam publicado relatos sobre o que vivenciaram nos campos de morte, mas com uma linguagem emotiva. Lanzmann foi além, ele quis levar a público a brutalidade desumana da Shoá. E conseguiu. Quem assistiu ao documentário dificilmente esquecerá os rostos, as vozes, os trens....

Quebrou as regras cinematográficas até então aceitas. Adotou uma nova abordagem conceitual em sua concepção estética e duração do documentário. Apesar de tratar de eventos ocorridos durante a 2ª Guerra, o documentário é exclusivamente filmado nos anos 1970 e 1980. Não há nenhuma imagem de arquivo, nenhuma filmagem de época, não há imagens dos guetos ou dos corpos encontrados pelos Aliados ao libertar os campos no final da Guerra. Tampouco há narração em off explicando o contexto e os eventos. Não há trilha sonora; ouve-se apenas a voz de Lanzmann, dos entrevistados e dos tradutores. E o barulho dos trens.

Até o título, Shoá - palavra em hebraico para “catástrofe” – termo totalmente desconhecido até então fora de Israel, provocou questionamentos. Ao lhe perguntarem o porquê da escolha, Lanzmann respondia, enfático: “Holocausto é um termo impróprio, inadequado, utilizado para as oferendas queimadas a D’us, no Tabernáculo e no Templo Sagrado. O que se abateu sobre os judeus da Europa foi uma catástrofe de dimensões inimagináveis”.

O filme daria voz aos mortos

Lanzmann se perguntava como estruturaria o filme? Qual seria o foco principal... até perceber que, em tudo que leu e viu, “faltava o mais importante: as câmaras de gás, a morte nessas câmaras das quais ninguém jamais voltara para contar o horror. O dia em que percebi que era isso o que faltava, soube que o tema do documentário seria a morte (...). Isto era uma contradição radical, pois, de certa forma, atestava a impossibilidade do projeto no qual eu estava me aventurando: os mortos não poderiam falar pelos mortos. Meu filme assumiria o desafio supremo: tomar o lugar das imagens inexistentes dos mortos nas câmaras de gás”. Em entrevista ao The Guardian, disse: “Os alemães não queriam deixar vivo nenhum dos sobreviventes, para que não pudessem dar seu testemunho (...). Nas entrevistas, os que sobreviveram não queriam falar sobre como haviam conseguido escapar à morte. Falavam em nome dos mortos”. Seu filme deu voz aos mortos.

Para gravar seus testemunhos, Lanzmann leva a maioria dos judeus sobreviventes de volta aos lugares onde ocorreram os eventos. Suas perguntas eram duras, queria detalhes sobre o ocorrido e pressionava para contarem sua história, mesmo sabendo que fazê-lo era extremamente doloroso. Durante os relatos, o foco da câmera é mantido em seus rostos, captando emoções, dor, hesitação, olhares perdidos...

As descrições em primeira mão, extremamente pessoais, não tinham parâmetro em nenhum relato anterior sobre o Holocausto. São um extenso conjunto de testemunhos para as futuras gerações. As vozes dos entrevistados transformam o extermínio em massa do judaísmo europeu num horror concreto, vivenciado por pessoas reais. O número de mortos, quase 7 milhões de judeus, e a rapidez com que foi executada a Solução Final nos levam a esquecer que cada um deles era um indivíduo com uma vida, uma família, amigos. O documentário faz com que os judeus assassinados, os sobreviventes, os espectadores e os algozes saiam do anonimato, colocando-os no centro do cataclismo que mudou nossa visão da própria humanidade. Os conceitos habituais utilizados nos estudos do Holocausto - nazismo, totalitarismo, genocídio, barbárie - tornam-se termos vazios perante a revelação brutal do sofrimento na voz de quem o vivenciou.

O resultado é uma narrativa visual dos acontecimentos que levaram à quase destruição do judaísmo europeu, tanto em termos geográficos quanto no dos vários níveis de pessoas envolvidas na Solução Final, desde nazistas de alta patente até os observadores passivos, nos vilarejos poloneses.

Vocês sabiam o destino que aguardava os judeus?

Lanzmann foi o primeiro a abordar o papel dos habitantes da Europa Oriental e seu nível de conhecimento acerca do assassinato em massa dos judeus. Ao entrevistar observadores e algozes nazistas, ele perguntava: “Vocês sabiam que destino aguardava os judeus? ”. A resposta, invariavelmente, era “sim”.

O espectador dificilmente esquecerá o descaso com que os poloneses relatam o desaparecimento dos judeus, as risadas mostrando o “gesto de degola” que costumavam fazer quando passavam os trens com os judeus amontoados. Tampouco as risadas de um grupo de polonesas sobre o desaparecimento das “judias bonitas” que os homens costumavam admirar, em sua cidade. Ou a frieza dos vizinhos ao relatar terem visto os judeus serem levados a chicotadas, mortos a tiros, ou enfiados nas camionetes que os iriam asfixiar. Ou as descrições dos habitantes de vilarejos ao lado dos campos da morte, que trabalhavam ao lado do arame farpado. Eles ouviram tudo, viram milhares entrar e não sair de lá, sentiram o cheiro insuportável de morte e carne queimada. Lanzmann chega a entrevistar Henryk Gawkowski, que durante a Shoá foi condutor de locomotiva na estação de Treblinka. Ele revela que deve ter transportado cerca de 18.000 judeus para o campo. Todas as vezes, enchia-se de vodka para aguentar aquele “serviço” e o cheiro dos corpos incinerados que se alastrava por quilômetros.

É fácil perceber por que o governo polonês classificou o documentário de “propaganda anti-polonesa”, argumentando que se tratava de uma clara acusação de “cumplicidade com o genocídio nazista”.

Como poderá o espectador esquecer a frieza dos assassinos, dos oficiais nazistas ao relatar episódios em que participaram ou que testemunharam, sempre negando conhecer o que ocorria. Em sua busca por entrevistas com oficias nazistas, Lanzmann trabalhou com endereços disponibilizados pelos julgamentos dos crimes de guerra, em Nuremberg.

A princípio, abordou-os diretamente, dizendo quem era e no que estava trabalhando. A recusa foi geral. Passou, então, a usar nome e passaporte falsos e uma câmera escondida. Seu principal disfarce era de um “revisionista histórico”. Prometia anonimato, mas estava todo “grampeado” – um microfone sob a gravata, um mini transmissor em um coldre de ombro e uma câmera fotográfica “espiando” escondida na bolsa de sua assistente. Fora da casa dos nazistas, captando palavras e imagens, um caminhão com o equipamento receptor. Certa vez, enquanto Lanzmann estava no norte da Alemanha, na casa de um elemento das SS responsável por ordenar a morte dos judeus em várias cidades ucranianas, os vizinhos perceberam o caminhão receptor. Antes que ele pudesse escapar, cinco alemães marcharam sala adentro. Atacado e hospitalizado, acabou com duas costelas quebradas.

Um dos nazistas entrevistados, Franz Suchomel, admitiu ter obrigado prisioneiros judeus nus, a caminho do extermínio, a fazer fila do lado de fora, em temperaturas invernais de -20º C. E ainda revelou que o campo de Belzec era “um estudo” sobre a execução da Solução Final; Treblinka, uma linha de montagem da morte ainda precária; mas Auschwitz, uma verdadeira fábrica. Outros nazistas descrevem em detalhes operações empreendidas contra judeus. Franz Schalling, por exemplo, descreve a operação em Chełmno. Walter Stier, ex-burocrata nazista, descreveu a operação das estradas de ferro, insistindo que estava muito ocupado dirigindo o tráfego ferroviário para perceber que seus trens carregavam judeus para a morte...

As testemunhas

O documentário começa com as imagens do Rio Ner, próximo a Chelmno, e a história de Simon Srebnik. Ele e outra testemunha, Mordechai (Michael) Podchlebnik, foram os únicos dois a sobreviver. Com apenas 13 anos as SS colocaram Srebnik a trabalhar na “manutenção do campo”. Com tornozelos acorrentados, ele se arrastava diariamente pelo vilarejo carregando sacos contendo cinzas e restos dos judeus mortos, que devia despejar no rio. Srebnik que possuía uma voz de soprano, era ainda forçado a cantar para entreter as SS. Todos em Chelmno o conheciam, e, quando ele voltou com Lanzmann, para a entrevista, os poloneses o “congratularam por ainda estar vivo”.

Outra entrevista de importância histórica foi a de Rudolf Vrba, um dos poucos que conseguiu fugir de Auschwitz e revelou ao mundo o horror dos campos. Mas, entre os testemunhos mais contundentes, estão o de Abraham Bomba, judeu, e de Jan Karski, polonês católico, membro da resistência.

Bomba, prisioneiro em Treblinka, era barbeiro por profissão. Lanzmann o levou de Nova York, onde ele vivia após a Guerra, a uma barbearia em Tel Aviv, e lhe pediu que cortasse o cabelo de um homem, durante a entrevista. Bomba praticamente não levanta a cabeça e narra com uma voz monótona como ele e outros barbeiros judeus eram forçados a cortar o cabelo das mulheres minutos antes que elas fossem asfixiadas nas câmaras de gás. Mas, quando ele chega na parte em que relata que teve que cortar o cabelo das mulheres de seu próprio vilarejo, sem poder oferecer uma palavra sequer de conforto, ele não se contém, desmonta. Mas Lanzmann insiste: “Você tem que contar! ”. Ele então revela, soluçando, como um amigo foi forçado a cortar o cabelo da própria esposa e da irmã.

A longa entrevista com Jan Karski é intensa e perturbadora, era a primeira vez que concordava em falar sobre o Holocausto. Durante a guerra, seu papel na resistência polonesa era atravessar as linhas inimigas levando informações para os aliados. Ele conta como os líderes da Resistência Judaica de Varsóvia o infiltraram no Gueto para ele ver com seus próprios olhos o que estava acontecendo, e levar as informações aos líderes aliados, pedindo ajuda. O rosto de Karski se contorce e os olhos se enchem de lágrimas ao relembrar o que ele queria jamais ter testemunhado: os mortos jogados nas ruas, os uivos de dor, o odor terrível, as crianças famintas, judeus tão magros que pareciam esqueletos ambulantes.

Sobrevivência

Para Lanzmann, sobrevivência era um ato de resistência, e ele entrevista tanto judeus que haviam sido Sonderkommandos, como combatentes da Resistência Judaica no Gueto de Varsóvia.

Os Sonderkommandos eram prisioneiros judeus, forçados, sob pena de morte, a “preparar” outros judeus para a morte – ajudar os nazistas a encaminhá-los às câmaras de gás e, em seguida, “livrar-se” dos corpos. Poucos sobreviveram, apenas 50, pois mantinham-nos vivos por pouco tempo, já que eram perigosas testemunhas da enormidade dos crimes nazistas. Lanzmann rejeitava enfaticamente a acusação de colaboração feita contra esses infelizes e, com as entrevistas, revela o pesadelo que viveram.

Em seu testemunho, Motke Zaidel relata que se calcula que 90.000 judeus do gueto de Vilna tenham sido levados e assassinados a tiros na floresta de Ponary, seus corpos amontoados em valas comuns. Zaidel foi um dos 84 judeus obrigados a cavar com as mãos para retirar os corpos dos judeus das valas e queimá-los. Teve que incinerar os restos de seus amigos, vizinhos, familiares. Durante as conversas com Zaidel, o Prof. Yehuda Bauer, renomado estudioso do Holocausto, introduziu o conceito de que os judeus da Europa foram para a sua morte “como carneiros para o matadouro”. Hanna, filha de Zaidel, conta que seu pai, ao ouvi-lo dizer isso, “levantou-se, deu um soco na mesa e disse, ‘queria que você estivesse lá’. E saiu da sala”.

O último a falar, em “Shoah”, é Simcha Rotem, um dos derradeiros heróis sobreviventes do Levante do Gueto de Varsóvia. Ele descreve como, após a liquidação, voltou ao gueto através dos esgotos, na esperança de encontrar algum de seus companheiros, algum sobrevivente. “Não vi nenhuma alma viva. Lembro-me que, em certo momento, senti uma certa paz, uma certa serenidade. E pensei, sozinho, em meio àquela total desolação, ‘sou o último judeu. Vou esperar que amanheça, e que os alemães cheguem’”. São as últimas palavras do filme.

“Shoah”, em Israel

Lançado em Paris em abril de 1985, apenas em junho de 1986 ocorreria sua première nacional, em Jerusalém. O filme tinha sido muito elogiado em toda parte, mas o julgamento do público israelense tinha especial importância para Lanzmann.

O documentário era a apresentação de seu relato sobre o evento mais terrível da História Judaica no único país judeu no mundo – um país cujas principais autoridades o tinham escolhido para a tarefa, confiando-lhe esse exercício de lembrança.

Sentados na recém-inaugurada Cinematheque de Jerusalém, defronte das muralhas da Cidade Velha, estavam o então primeiro-ministro Shimon Peres, com o presidente do país, o Rabino-chefe e até o chefe do Estado Maior. Entre o público presente, estavam vários dos entrevistados, muitos com filhos pequenos a seu lado. Para o público o filme foi devastador. Durante mais de nove horas ficaram quietos, arrebatados. Alguns não aguentaram –desmaiaram ou tiveram parada cardíaca.

Aqueles que tinham estado lá e visto a morte de perto, entenderam que finalmente conseguiriam falar sobre o assunto. Aqueles que não tinham vivido o terrível pesadelo e que por um longo tempo não conseguiam absorver, aceitar ou pior, eram cruéis em seu julgamento sobre o que acontecera aos judeus da Europa, esses agora entendiam. Tinham finalmente compreendido que a Shoá era parte também da alma de Israel. Nenhum judeu, sobrevivente ou não, israelense ou não, podia escapar disso. Muitas pessoas, e muitos de seus filhos, tinham sido moldados – ou quebrados para sempre – pela monstruosidade do Holocausto.

Ao final da exibição, não houve aplausos. Ao contrário, reinava um silêncio absoluto, até que um a um, levantaram-se e foram até Lanzmann. Ao deixar a Cinemateca, Motke Zaidel disse: “Graças a D’us. Agora vão saber tudo. Agora vão entender”. Ele carregara o terrível peso por tanto tempo, ele que fora obrigado a queimar sua família – seu sangue – em Ponary. Como viver com aquilo? Mas o filme de Claude Lanzmann lhe tinha dado “algum respeito, alguma compreensão”...

N.R.: O documentário foi digitalizado em 2012, estando desde então no YouTube, graças ao apoio da Fundação para a Memória da Shoá e o Centro Nacional do Cinema (França) e a participação da IFC Films e Criterion Collection (EUA).